Portaria da UFC esquenta o debate sobre o uso da IA no ensino superior — entenda
Por João Melo • Editado por Melissa Cruz Cossetti | •

Um levantamento realizado entre julho e agosto pela Cátedra Oscar Sala da Universidade de São Paulo (USP) apontou que apenas sete instituições de ensino superior brasileiras contavam com diretrizes voltadas ao uso da inteligência artificial (IA). Pouco tempo após a divulgação da pesquisa, a Universidade Federal do Ceará (UFC) publicou, em 1º de outubro, a Portaria nº 39/2025 (prppg.ufc.br) que estabelece normas para o uso da tecnologia emergente na instituição.
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No entanto, as diretrizes da UFC reacenderam o debate sobre o uso da IA por parte de docentes e estudantes. Especialistas destacam que o documento pode, na verdade, representar um retrocesso na integração dessas tecnologias ao cotidiano acadêmico, e a universidade defendeu o documento.
Rafael Cardoso Sampaio, professor de Comunicação Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Raquel Lobão, docente do Departamento de Jornalismo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), criticaram a obrigatoriedade de submeter trabalhos a sistemas de verificação.
“A portaria se inicia criando um estranho regime de obrigatoriedade de submissão dos trabalhos a ferramentas de verificação de similaridade, especificamente o Turnitin, e em seguida trata de suas regras específicas sobre o uso de IA na pesquisa”, destacam os especialistas, ambos envolvidos na pesquisa sobre diretrizes de IA no ensino superior, em uma publicação feita pelo The Conversation.
Segundo eles, esses detectores são “notoriamente imprecisos” e podem apresentar falsos positivos e falsos negativos.
Geração de conteúdo original
Sampaio e Lobão chamam atenção também para o Artigo 5º da portaria, que estabelece uma lista de usos vedados da IA na universidade. A geração de “conteúdo original, interpretações ou análises críticas” está entre os usos proibidos.
“Isso transforma o ato de ser honesto em uma potencial confissão de infração. Por exemplo, a ambiguidade entre o que constitui ‘exploração inicial de ideias’ (permitida) e ‘geração de conteúdo original’ (proibida) cria uma zona cinzenta perigosa, em que qualquer uso declarado pode ser interpretado como violação normativa”, escrevem os especialistas.
Eles pontuam ainda que, como muitos docentes e estudantes ainda estão se familiarizando com tecnologias de IA, os parâmetros podem soar ambíguos e desestimular o uso das ferramentas.
O impacto, no caso dos alunos ainda em formação, pode ocorrer não apenas durante a graduação, mas também no mercado de trabalho, onde provavelmente disputarão vagas técnicas com profissionais que já inseriram essa tecnologia no dia a dia.
“A crítica aqui apresentada não implica defender a ausência de regulação, mas sim a necessidade de uma abordagem diferente, focada na formação. Uma política institucional adequada deveria partir do reconhecimento de que a IA generativa já está presente na realidade de professores e alunos, e que a função da universidade é formar pesquisadores capazes de utilizá-la de forma crítica, ética e produtiva”, ressaltam os especialistas.
Posicionamento da UFC
Em um posicionamento enviado também ao The Conversation, a Universidade Federal do Ceará afirma que a portaria tem como objetivo orientar a comunidade acadêmica sobre as responsabilidades do uso da IA no dia a dia. A instituição ressalta que o documento não proíbe a utilização dessas tecnologias e que “não tem caráter punitivo”.
“A portaria não impõe sanções automáticas nem criminaliza o uso de IA, mas estabelece diretrizes éticas e de transparência, reforçando a necessidade de que discentes e orientadores declarem o uso de IA em atividades de apoio, como revisão textual, tradução, sumarização de dados ou geração de código”, pontua a UFC.
A universidade acrescenta que o intuito é prevenir o uso indevido da IA, que possa resultar na perda de autoridade intelectual ou na geração de desinformação científica.
Segundo a instituição de ensino, as IAs podem continuar sendo utilizadas como apoio auxiliar — na organização de ideias, revisão gramatical e estruturação de textos acadêmicos — desde que o uso seja declarado. Contudo, essas práticas não devem substituir o “raciocínio crítico e autoral do pesquisador”.
“Um uso não declarado pode ser equiparado a uma ajuda externa não reconhecida, já que modelos de IA não são autores, não possuem intenção, consciência nem responsabilidade ética”, destaca a universidade.
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