Por que o brasileiro confia tanto na inteligência artificial?
Por Marcelo Fischer Salvatico |

O Brasil não teve dificuldades em aceitar o fenômeno da inteligência artificial (IA). De acordo com um levantamento da Cisco, o país ocupa a segunda posição global no uso de IA generativa com 51,6% dos entrevistados afirmando utilizar a tecnologia ativamente — ficando atrás apenas da Índia.
Mas a relação do brasileiro com a ferramenta vai além da produtividade, a IA se tornou “confidente” e conselheira na vida do usuário daqui.
Uma pesquisa inédita da consultoria Página 3, intitulada "Mais do Mesmo", revela que a confiança na tecnologia ultrapassa barreiras funcionais e entra na esfera emocional: 63% dos brasileiros admitem usar IA para pedir ajuda na escrita de mensagens pessoais.
Mas como que, apenas pouco mais de três anos do lançamento do ChatGPT, o Brasil aderiu tão profundamente a IA e desenvolveu uma relação de confiança na ferramenta? Para as especialistas ouvidas pelo Canaltech, a resposta passa por fatores culturais e pela busca humana por validação.
A cultura do "early adopter" e o conforto do ego
Historicamente, o brasileiro possui uma forte inclinação para a adoção de novidades digitais, se comportando como um “early adopter” – adotante inicial, em inglês – em redes sociais e novas tecnologias. Contudo, a relação com IA traz uma camada adicional: o conforto psicológico.
Diferente de uma interação humana, que pode gerar atrito, discordância ou julgamento, a IA é programada para ser prestativa e, muitas vezes, complacente.
"É muito mais gostoso conversar com uma máquina que está te aplaudindo, falando quão inteligente você é, do que conversar com alguém que vai te trazer novas camadas daquilo que você pensa, te questionar e, eventualmente, te deixar num lugar sem resposta", explica Sabrina Abud, sócia e cofundadora da Página 3.
Georgia Reinés, que também é sócia e cofundadora da consultoria, complementa que esse processo gera um ciclo de autoafirmação.
"A máquina te copia, você copia a máquina e a máquina o tempo todo traz aquele ego para você, te afirmando. Falando: 'Muito bem! Que ótima pergunta!'. A gente entra nesses processos de autoafirmação que, em casos extremos, podem ser perigosos", alerta Reinés.
Terceirização da personalidade
Essa confiança elevada tem levado a uma "terceirização" de processos cognitivos e sociais. O estudo aponta que quase metade (49%) dos entrevistados prefere recorrer a modelos de IA do que a seres humanos antes de tomar decisões.
O fenômeno impacta diretamente a autenticidade das relações. O uso de algoritmos para mediar conversas íntimas — como terminar relacionamentos ou dialogar com ex-cônjuges — cria um distanciamento emocional.
Quando vemos o avanço da IA, muito baseado nos filmes de ficção científica, tememos que “os robôs se tornem humanos”. Mas, Sabrina Abud faz uma provocação que diz exatamente o contrário: nós quem estamos “nos tornando robôs”.
"Quando a gente vai reduzindo tanto essas nossas capacidades cognitivas, inclusive de conversar com o outro no âmbito pessoal, é a gente que está se tornando robô no fim", reflete Abud.
O efeito "mais do mesmo"
O uso intensivo e sem pensamento crítico da IA acelera um processo de padronização comportamental. Segundo a pesquisa, 48% dos brasileiros já percebem que as pessoas estão ficando cada vez mais parecidas entre si. Além disso, 63% concordam que, no passado, as pessoas eram mais autênticas.
Reinés destaca que a IA intensifica bolhas que já existiam nas redes sociais. Ao recebermos respostas prontas e padronizadas, deixamos de exercer a identidade.
"Eu não sei o que eu sinto, porque talvez eu não tenha tempo para saber o que eu sinto. Eu não sei qual a minha opinião sobre determinado assunto porque eu já fui perguntando para o ChatGPT e a resposta que ele deu eu já aceitei", analisa.
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