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Games, diversidade e um aprendizado que nunca acaba

Por| 07 de Março de 2019 às 08h48

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Games, diversidade e um aprendizado que nunca acaba
Games, diversidade e um aprendizado que nunca acaba

Quando se fala em diversidade e inclusão nos videogames, é normal pensar logo de cara em mulheres empoderadas e/ou como protagonistas e, porque não, nas incontáveis polêmicas sobre esse tema. Mas desta vez não vamos destacar escândalos, mas sim enaltecer como os videogames, em especial no Brasil, ainda estão engatinhando quando o assunto é inclusão e representatividade em geral.

Vale, antes de mais nada, ressaltar o que são essas palavrinhas, pois parece que quanto mais se fala delas, menos elas parecem fazer sentido para alguns — especialmente para aqueles que realmente precisam entendê-las. Diversidade, representatividade e inclusão possuem significados brevemente diferentes, mas todas convergem para um mesmo fim.

Esse aspecto em comum é, de forma bem simples, dar mais destaque para toda a pluralidade de pessoas que existem no mundo e suas culturas, gêneros e não-gêneros, orientações sexuais, raças e/ou etnias e todo e qualquer outro aspecto de sua personalidade e forma de vida; saindo dos padrões estabelecidos desde sempre pela sociedade e fazendo, de forma geral, com que todos possam se sentir representados em uma mídia.

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Essa é uma visão bem resumida e básica do que as palavras representam e, quando se fala de mídia (isto é: filmes, séries, quadrinhos, animes, mangás, games, etc) as indústrias e seus respectivos públicos ainda parecem estar engatinhando nesses assuntos. A base para tudo é a empatia e esse sentimento é constantemente ignorado pelas pessoas.

Mas vamos afunilar um pouco mais o tema e focar em videogames. Quando falamos dessa mídia em específico e puxamos o gancho para falar de diversidade e de representatividade, é comum pensar em como personagens femininas aos poucos (bem aos poucos mesmo) têm ganhado mais visibilidade e importância e, principalmente, sendo menos objetificadas e sexualizadas. Claro, essas práticas ainda existem, mas a passos de formiga a indústria parece estar mudando.

Só em 2017, pelo menos sete dos melhores jogos do ano ganharam protagonistas femininas em destaque em suas capas e, somado a esses, aproximadamente 10 dos mais consagrados games do mesmo ano tinham personagens mulheres importantes na narrativa. Em questão de bastidores e desenvolvimento, há registros de 21% de mulheres trabalhando em projetos de games e pelo menos 5% de transgêneros e andrógenos.

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E com essa brecha que as personagens femininas e as desenvolvedoras começaram a ganhar recentemente, podemos finalmente abrir a portela para os demais: onde está o público LGBTQ+? Indo além e tocando em outra questão um pouco mais enraizada nas origens brasileiras: onde estão os índios? Se mulheres na indústria parecem ser uma joia rara de se achar, pessoas representando um desses dois grupos então nem se fala.

Huni Kuin, Nova Califórnia e Florescer

Os jogos nacionais estão ganhando cada vez mais vibisibilidade, o que é ótimo, ainda que isso seja algo pequeno se compararmos ao que os games AAA de publishers de renome geralmente recebem. Todavia, durante a Campus Party 2019, o Sesc SP abriu um espaço muito bacana para oficinas e, em especial, para desenvolvedores independentes mostrarem seus trabalhos.

Não apenas isso, eles também falaram com o público e mostraram suas visões, além de compartilharem suas histórias em um bate-papo mais do que especial. Osvaldo Isaka veio falar de Huni Kuin, enquanto que Mariana Souto representou Florescer e Tainá Félix cuidou de A Nova Califórnia — todos games brasileiros com enredos enraizados na história, no cotidiano e na literatura do Brasil.

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Durante o bate-papo na Campus Party 2019, mediado por Cris Bartis do podcast Mamilos, os três desenvolvedores comentaram sobre a criação de seus jogos e compartilharam opiniões sobre as temáticas que eles abordaram em cada uma de suas criações. Uma das principais questões levantadas por Tainá, inclusive, e que tem totalmente a ver com este texto, é a visibilidade.

"A sociedade é múltipla e diversa, mas quem são as pessoas que têm a oportunidade de estarem no meio da midia produzindo conteúdo?", questionou a desenvolvedora do game A Nova Califórnia, que tem como base um conto de Lima Barreto e aborda, sobretudo, o preconceito contra negros. Já Mariana ressaltou que mais de 50% dos jogadores no Brasil são mulheres, mas, ao mesmo tempo, o nosso país é o que mais elimina transexuais, de acordo com dados da ONG Transgender Europe.

O título em que ela trabalhou, Florescer, foi o TCC da faculdade feito por ela e outros estudantes da Anhembi Morumbi e tem como base uma adolescente transexual vivendo seu cotidiano. "Por que os jogos comerciais não tratam de representatividade?", a jovem levantou a questão, uma vez que o seu jogo recebeu auxílio da Casa Florescer, que ajuda e abriga mulheres trans. Já Isaka, que se declarou um verdadeiro nerd, foi acompanhado do amigo Guilherme Pinho Meneses para a Campus Party 2019.

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Ele contou que conheceu Guilherme a beira do Rio Jordão e, ao lado de outras pessoas da região, entre estes jovens e velhos, se juntou ao antropólogo e game designer para contar histórias e participar do projeto de jogo com o objetivo de fortalecer as origens de sua aldeia Centro de Memórias (composta de outras grandes aldeias) e compartilhá-las com o resto do mundo gratuitamente.

Além da representatividade e das temáticas abordadas em seus jogos, outro ponto interessante do bate-papo entre os desenvolvedores foi o modelo de produção seguido atualmente pela indústria, e inclusive pelos brasileiros — ainda que essa base não exatamente sirva para o modo como vivemos por aqui.

Isso porque lá fora se criam jogos já almejando o prêmio de "Jogo do Ano" e esse pensamento se reproduz no Brasil. Entretanto, os jovens desenvolvedores independentes esquecem que o mercado brasileiro de jogos, em termos de criação e visibilidade, ainda está engatinhando. A solução, segundo os desenvolvedores no palco, contudo, poderia ser criar um modelo de produção e distribuição com regras brasileiras, de uma forma que funcionasse dentro da nossa realidade.

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Responsabilidade histórica

O jogo Florescer nasceu a partir de uma proposta da faculdade em que Mariana estudava: de que os alunos trabalhassem com alguma ONG. O grupo dela decidiu procurar a Casa Florescer para seu projeto acadêmico de conclusão de curso. O local, por sua vez, é conhecido por acolher mulheres transexuais e travestis — uma causa com a qual o time de desenvolvimento do game também se preocupa. Mariana também nos contou que o jogo foi desenvolvido junto com as meninas do abrigo e que elas ajudaram em todo o processo:

"Se um grupo de desenvolvedores — qualquer um, no caso o nosso — está fazendo um jogo sobre mulheres trans; [é] preciso ter mulheres trans acompanhando esse projeto e dando suas opiniões para evitar que a gente, que somos cis, caia em armadilhas de criar personagens estereotipados, de assumir coisas que a gente acha que é verdade, mas não sabemos se é porque não vivemos aquilo... Então foi muito importante esse apoio e compartilhamento das histórias delas".
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Em Florescer, os jogadores acompanham história de Bia, uma adolescente trans vivendo seu dia-a-dia. Mariana inclusive nos revelou que o game originalmente teria mais personagens, pelo menos cinco outras transexuais inspiradas nas meninas da Casa Florescer, cada qual com sua própria trajetória. Porém, como era um projeto de faculdade e havia um prazo para ele ser entregue, o time de desenvolvimento optou por focar em uma protagonista apenas, a Bia, e usar pontos em comum das histórias das pessoas abrigadas, para guiar a narrativa dela no jogo.

Em termos de mecânicas, Florescer conta o cotidiano da Bia, uma adolescente; então, para Mariana, não faria sentido mostrar um jogo de ação e aventura. Ao invés disso, o time de desenvolvimento optou por desenvolver o game com mecânicas de exploração e contemplação, que mostra como é a vida da protagonista para o jogador e as dificuldades que ela enfrenta todos os dias.

"A gente não começou a história já falando que a Bia é uma adolescente trans porque se a pessoa tem algum preconceito, talvez ela não fosse querer jogar o game; então tivemos esse controle de irmos jogando as informações sobre a Bia aos poucos", revelou Mariana quando comentou sobre o que foi feito para instigar a curiosidade dos jogadores — o que é particularmente interessante, tendo em vista de que, antes de ser trans ou ser parte de qualquer outro grupo, todos são pessoas, então a abordagem de simpatização com a personagem foi mais do que perfeita. "É isso que o mundo precisa entender: essas pessoas não são trans, elas são pessoas", ressaltou a desenvolvedora.

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A Nova Califórnia, nomeado a partir de uma obra de Lima Barreto, levou alguns anos em seu desenvolvimento até ser concluído. De acordo com Tainá, ela e seu time queriam repassar a representatividade mostrada na publicação, mas com outra linguagem, ou seja, através dos videogames, que é uma mídia bastante popular hoje em dia.

"O nosso primeiro objetivo como desenvolvedores foi: 'construir uma experiência estética jogável do conto A Nova Califórnia', ou seja, fazer com que as pessoas pudessem vivenciar a história que é narrada pelos dedos de Lima Barreto. Era o objetivo [primário] fazer com que essa experiência pudesse ser vivida", a desenvolvedora complementou.

Para tanto, o time de desenvolvimento fez uma pesquisa histórica sobre o momento que Lima Barreto escreveu o conto, levando em conta diferentes camadas de artes (visual, música, etc.). Assim, a inserção de móveis do início do século XX ou canções da Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazaré, por exemplo, foram extremamente necessárias, pois são parte da época (e da vida) do autor — muito embora esses elementos sejam colocados de maneira natural e lúdica.

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Raízes brasileiras

Além dessas pesquisas e o cuidado em repassar com fidelidade à obra a mensagem do autor — detalhes muito importantes para o desenvolvimento das desigualdades entre negros e não-negros no Brasil —, vale ressaltar que A Nova Califórnia foi desenvolvido em RPG Maker e baseado em jogabilidade de adventures. Porém, segundo Tainá, quando o game ainda era um protótipo, a equipe de desenvolvimento pensou em utilizar batalhas épicas na narrativa.

Isso não faria muito sentido, todavia, ainda mais levando em conta que a base eram as histórias de Lima Barreto. Assim sendo, o time focou exclusivamente na narrativa. Tainá, inclusive, comentou sobre uma youtuber que testou o game e, curiosamente, interpretou que o gameplay girava em torno de "coletar fofocas" — o que cai muito bem para a proposta da história que eles queriam contar, diga-se de passagem.

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Segundo Tainá, A Nova Califórnia é também muito pautado na subjetividade. Ela mencionou uma experiência que teve com teatro e representação para elaborar esse comentário. "Fazer peças com finais abertos... Considerando essa tradição, quando a gente foi criar o Nova Califórnia, não queríamos dizer para o público uma mensagem clara como 'Olha, ser ganancioso é ruim!', 'Olha, você vai se dar mal!'; porque inclusive, não é isso que o Lima Barreto faz no conto. Ele deixa absolutamente aberto o que acontece com o personagem mais ganancioso da história, que é o jogador", explicou a desenvolvedora.

"Então, se o Lima Barreto, em sua sabedoria literária, fez isso, por que eu, uma reles mortal e admiradora de seu trabalho não faria o mesmo com o jogo que conta essa história?", brincou. Todo esse cuidado foi tomado para conceder liberdade ao jogador, até mesmo em suas escolhas de respostas — as quais não necessariamente estão certas ou erradas na programação do jogo. Ao final, espera-se que ele mesmo reflita sobre suas atitudes (relacionadas a preconceitos) ao longo da jogatina após experimentar como era ser um negro em meados de 1900, período de pós-abolição da escravatura.

"A gente se arrisca [em uma narrativa subjetiva] porque o Lima Barreto se arriscou, sendo ele um autor negro e sabendo da condição e da visibilidade que ele tinha na literatura naquele momento ou não, tendo de contemporâneo um Machado de Assis, por exemplo; se colocando nesse lugar e, [ao] contar uma história, não tomar partido nela, mas deixando que o público e seus leitores tomem as conclusões possíveis sobre sua mensagem", explicou Tainá.

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Quanto a Huni Kuin: Os Caminhos da Jiboia, Isaka e Guilherme nos revelaram que foram quatro anos para finalizar o jogo e que ele recebeu este nome por causa do povos da tribo Huni Kuin, ou Kaxinawá, que habitam, dentre outras áreas latino-americanas, o estado do Acre e o sul do Amazonas, abarcando especificamente as regiões do Alto Juruá e Purus e o Vale do Javari.

O objetivo por trás da criação do título era o de fortalecer os jogadores com conhecimentos dos Huni Kuin, já que o jogo leva lendas e histórias do povo Kaxinawá em sua narrativa e, mesmo sendo totalmente em 2D, possui desenhos feitos pelas próprias crianças da tribo. O game já está, inclusive, disponível para ser jogado e pode ser baixado gratuitamente. Ele é narrado no idioma hatxã kuĩ e legendado em português, inglês, espanhol e, claro, na língua nativa dos indígenas que deram origem ao jogo.

De acordo com Guilherme, o combinado entre ele e os demais desenvolvedores foi que o jogo fosse aberto e gratuito para que quem o adquirisse pudesse acessar as histórias que o jogo conta. "Nós ficamos mais de quatro meses lá com os Huni Kuin, foram quatro viagens e o Isaka também veio em outras viagens para São Paulo para trabalhar na narração e em outros assuntos de estúdio", revelou o antropólogo sobre o desenvolvimento.

Material infinito

Os indígenas da tribo Kaxinawá eram, segundo Guilherme, o "controle de qualidade" do jogo. Isso porque, de acordo com Isaka, foram escolhidas cinco histórias das origens da tribo para serem colocadas dentro do jogo. O objetivo, afinal, era fortalecer o conhecimento acerca dos Kaxinawá para que as pessoas possam conhecer os mitos, os contos e tudo mais. "A cultura Huni Kuin é infinita, tem muito material", comenta Guilherme, de modo que os jogadores vão levar cerca de três horas para experimentar tudo que o game tem a oferecer. "Cada história é um jogo por si só", acrescenta.

Em Huni Kuin: Os Caminhos da Jiboia, os jogadores contemplam as histórias da tribo que dá nome ao game. Neste ponto, Guilherme, por sua vez, ressaltou as diferentes concepções que os indígenas têm do mundo e da vida, além da bagagem histórico-cultural que eles carregam em suas raízes — e como ele trabalhou para moldar essa cosmologia de modo a inseri-la em forma de mecânicas no jogo.

O antropólogo citou como exemplo um conceito da tribo conhecido como Yuxibu, que basicamente são grandes espíritos que regem elementos do cotidianos (o céu, a Lua, as estrelas, a floresta, o Sol, etc.). Para o game, isso foi adaptado da seguinte forma: se o personagem caçar muito e começar a matar muitos animais e/ou plantas, os Yuxibu começam a ficar bravos e o jogo, automaticamente, se torna mais difícil, com animais atacando mais ferozmente e a carne dos bichos que foram caçados começando a apodrecer, dentre outras punições.

Este tipo de "material infinito" disponibilizado pelas crianças e pelos anciões dos Kaxinawá nos faz pensar, automaticamente, na quantidade e pluralidade de lendas, mitos e histórias que o Brasil carrega em suas costas; e que já foram perdidos e nunca registrados de alguma forma. Isso tudo considerando que o nosso país é um dos que mais possui diversidade em absolutamente tudo que o rodeia.

É um desperdício pensar que as pessoas que habitam estas terras ainda sejam tão fechadas a novas ideias e a abraçar a empatia para com o próximo, esteja ele ainda vivo ou não. Que mais jogos como Florescer, A Nova Califórnia e Huni Kuin apareçam para mudar um pouco a mentalidade e o comportamento do jogador brasileiro — e futuramente, porque não dizer, da indústria de videogames como um todo.

Fonte: Acervo, Statista, Super, Globo