Contra o crunch, empresa lança modelo de “desenvolvimento ético” nos games
Por Wagner Wakka |

Rafael* trabalhava no desenvolvimento de um jogo RPG brasileiro, de um estúdio independente, quando encarou o chamado crunch time pela primeira vez. Programador, ele viveu jornadas de 10 horas, por vezes, 12 horas por dia, sem feriados e finais de semana para entregar o trabalho. O que parecia que seria só um período passageiro, contudo, se tornou corrente. “Todo mês iniciava o mês com a mentalidade de ‘vamos lançar daqui a 2 meses’. Exceto que foi assim por no mínimo dois anos”, relatou ao Canaltech.
A prática de trabalhar além das corriqueiras oito horas de trabalho, sem folgas nem finais de semana é tão enraizado na cultura de desenvolvimento de jogos que tem até um termo para isso: crunch time. Segundo o jornalista Jason Scheirer em seu livro Sangue, Suor e Pixels, a palavra não tem exatamente uma origem concreta, mas é associada à onomatopeia relativa ao som de ranger os dentes, em um momento de grande estresse. O termo também significa “triturar” na tradução direta.
A ideia de crunch não exatamente de todo maléfica. Alguns desenvolvedores argumentam que dar aquele esforço final de uma semana é comum para aparar as arestas de um jogo. O problema está quando a prática se torna constante.
O cenário não é típico do mercado brasileiro de jogos. No livro, Scheirer relata casos de desenvolvimento de 10 games, sendo que todos relataram exageros em questões trabalhistas.
Por isso que uma publicadora de jogos chamada Modern Wolf está ganhando destaque. A companhia foi fundada no ano passado com uma filosofia que vai à contramão do mercado, propondo o que o CEO Fernando Rizo chamada de “desenvolvimento ético”.
“As pessoas que trabalham com a gente já passaram por situações em que eram exploradas por conta de sua paixão com o trabalho. Nós não queremos isso. Queremos que os jogos sejam bons, mas antes de tudo que as pessoas estejam bem em trabalhar conosco”, aponta Rizo em entrevista ao Canaltech.
Para isso, eles propõem uma relação mais próxima com os desenvolvedores com quem gostariam de trabalhar. “Falamos com eles todas as semanas, às vezes, até mais que isso. Damos o suporte de organização de cronograma exatamente para que não precisem fazer o crunch para entregar alguma coisa. É preciso ter uma linha aberta de diálogo o tempo todo para isso”, informa Rizo.
Entretanto, ele lembra que o modelo “não é para todo mundo”. Os times são escolhidos a dedo pela Modern Wolf, que visita o estúdio de desenvolvimento e conversa com os líderes das equipes. O importante é colocar as pessoas acima do projeto.
O que causa o crunch?
“Comecei na carreira de games abrindo meu próprio estúdio com outros sócios. Juntamos nossas finanças e vimos que tínhamos recursos para se manter aberto por um ano. Então tínhamos seis meses para montar um protótipo e mais seis meses para vender o projeto. Nesses seis meses trabalhamos seis a sete dias da semana por 10, 12, 16 horas por dia. Depois que vendemos o projeto para uma publisher estrangeira, melhorou um pouco, mas periodicamente tínhamos crunch de trabalharmos 48 ou mais horas seguidas”, aponta Guilherme*.
O Canaltech conversou com cinco desenvolvedores brasileiros e mais dois estrangeiros de diferentes níveis de equipe em companhias com times maiores e menores. Um dos principais pontos apontados por eles está na dificuldade de gerenciamento de cronograma.
Fazer um jogo envolve um processo de testes e iterações. Diferente de outras indústrias como a do cinema e música, um desenvolvedor de games só sabe se uma mecânica funciona realmente para seu jogo depois que ele a cria e testa.
Para isso, há um processo inicial de prototipagem, chamada de “vertical slice”. Neste caso, a ideia é testar se uma proposta funciona ou não, de modo mais simples possível. Somente esta primeira etapa já pode tomar meses do desenvolvimento e ser completamente jogada fora.
“A gente se organizar: vamos tomar uns quatro ou cinco meses para pré-produção. Isso inclui brainstorm, criação de mais de um protótipo para ser testado e chegarmos a algo ideal. O segredo é ter mais de uma proposta para não chegar lá na frente e ter que começar tudo de novo”, explica Luis Tashiro, CEO da Mad Mimic, estúdio brasileiro de games.
Segundo ele, a companhia já passou por crunch no passado, exatamente por dificuldades em organizar o time com tempo suficiente para entregar todas as promessas dentro do prazo. Nisso, ele aponta, também está no aprendizado de ser generoso não somente no tempo para realizar as tarefas, mas também não prometer mais do que se pode entregar.
É só dar mais tempo?
Em janeiro deste ano, a CD Projekt RED adiou pela primeira vez em 2020 o lançamento de Cyberpunk 2077. O estúdio tem denúncias recorrentes de crunch times severos como os descritos por Guilherme*. A expectativa era de que, com mais tempo para desenvolver o título, os funcionários tivessem um alívio.
Para Felipe*, também programador, a solução passa ainda por um conhecimento pessoal, uma maturidade no meio para poder não aceitar condições de emprego nas quais o crunch seja regra. “Com o tempo, você percebe que não é normal passar por isso e pode buscar outras opções”, comenta.
*Todos os nomes de desenvolvedores foram trocados para garantir o anonimato deles.