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Análise | A distopia perturbadora de We Happy Few acaba falhando no básico

Por| 17 de Agosto de 2018 às 14h22

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Análise | A distopia perturbadora de We Happy Few acaba falhando no básico
Análise | A distopia perturbadora de We Happy Few acaba falhando no básico

Um ato tão aterrador e destruidor que maculou o tecido da sanidade das pessoas, que passaram a depender de remédios para suprimirem as memórias ruins e viverem em uma realidade encantada e colorida, mesmo que falsa. Essas são as linhas gerais da distopia apresentada por We Happy Few, um mundo em que o compasso moral não importa tanto — pelo menos, não mais do que o bem-estar social promovido pelos alucinógenos.

Estamos em uma versão alternativa dos anos 1960, um mundo em que os Estados Unidos não se uniram à Segunda Guerra Mundial, deixando a Europa sob a ameaça nazista. Estranhamente, porém, a ilha de Wellington Wells não se parece muito com um local recentemente afetado por tamanho conflito; muito pelo contrário, é uma região próspera, cujos avanços tecnológicos a colocam à frente, até mesmo, do restante do Velho Continente. Um isolamento que coincide, estranhamente, com o fato de a Alemanha, por ali, não ter grande presença.

Nos primeiros momentos do game, assumimos a pele de Arthur, um funcionário do departamento de censura que é o responsável por escolher quais notícias devem ser passadas ao público ou mantidas nos arquivos — somente as boas, nesse caso. Ele se depara, então, com um noticiário sobre o próprio passado, que acaba ativando memórias negativas. Assim começa a nossa história, pouco depois de nossos colegas de trabalho perceberem que o protagonista está “meio para baixo” e tentarem matá-lo por conta disso.

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O enredo do universo de We Happy Few se desenrola de forma paralela à saga do próprio Arthur. Na medida em que vamos descobrindo mais sobre o passado do protagonista, também são reveladas as verdades sobre um mundo que, por um motivo dos mais aterradores, decidiu deixar o passado para trás e confiar o futuro na Alegria (Joy, no original em inglês), uma droga sintética que suprime memórias ruins e deixa todo mundo com um sorriso no rosto.

É o tipo de comprimidinho mágico que, mesmo em nossa realidade, muita gente tomaria sem hesitar. Em Wellington Wells, ela serviu para manter as engrenagens da sociedade lubrificadas, mesmo que, como efeito colateral, os cidadãos passassem a ter uma ideia meio errada do que é certo ou errado, tornando aceitável, por exemplo, apedrejar ou pisotear alguém que não se veste adequadamente, anda por aí de maneira suspeita ou se esqueceu de tomar os remédios prescritos.

Ao longo de sua jornada de descoberta e revelação, na qual questiona os limites da realidade e da alucinação, Arthur também descobre mais sobre os limites desse mundo e, também, sobre a opressão e divisão existentes em Wellington Wells. O colorido das ruas é só uma fachada, assim como a própria máscara utilizada pelos viciados em Alegria, que esconde uma realidade bem mais complexa, sinistra e, principalmente, devastadora.

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O mundo de We Happy Few é fantástico e absurdo, com licenças poéticas e tecnológicas que só poderiam existir em um videogame. As inspirações nos filmes antigos e em títulos mais recentes, como os da série Bioshock, aparecem sem cerimônia, entremeadas ao estilo meio brega que somente a Inglaterra dos anos 1960 pode representar.

Como toda boa distopia, o game apresenta um universo distante, mas ao mesmo tempo plenamente reconhecível e, principalmente, palpável. O título da Compulsion Games se passa em outra realidade, mas dá para perceber facilmente que ela poderia muito bem ser a nossa, principalmente quando o jogador passa a entender o que exatamente levou à criação da Alegria e, pior ainda, até compreende o desespero que levou os cidadãos a lutarem como feras pela a manutenção de sua sociedade e viverem uma vida de ilusão.

A dura realidade

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A cada descoberta e cutscene, a história de We Happy Few vai desabrochando. Além de Arthur, podemos jogar com outros personagens com histórias próprias, mas também envolvidos nos eventos encarados por ele, que é o grande fio condutor da história. Ao mesmo tempo, tal controle revela novas perspectivas e conflitos pessoais, mostrando que a aparência de felicidade de Wellington Wells é bem mais frágil do que o sorriso travado nas máscaras dos cidadãos faz parecer.

Chegar até tais cenas, entretanto, não é tarefa das mais divertidas, pois a jogabilidade de We Happy Few é o exato oposto da surrealidade criativa de seu roteiro. Nos trechos em que efetivamente controlamos os protagonistas, o que vemos é um festival de bugs e falta de polimento, além de uma repetitividade extrema que tira completamente a vontade de seguir adiante.

Assim como no recente God of War, o título da Compulsion alterna segmentos lineares e direcionados, que contam a história, com áreas de mundo aberto. É nelas que acontece a coleta de recursos e encontramos as missões secundárias, além da maioria dos habitantes desse mundo, que revelam suas mazelas e histórias. Há sempre um indicador principal na tela e é possível seguir diretamente para ele, mas, claro, essa não é a melhor maneira de se jogar.

Cumprir os outros objetivos, porém, se torna um verdadeiro martírio na medida em que temos as sensações de estarmos sempre encontrando os mesmos NPCs. É claro, nas cidades desenvolvidas, eles estão mascarados, mas ainda assim não dá para não reparar no fato de todos os guardas serem altos e magros, todos os marginais de gangues terem a mesma aparência, boa parte das mulheres usarem roupas de bolinhas coloridas e todas as idosas serem baixinhas e parecidas com a Rainha da Inglaterra. Sem máscara, assim como temos poucos modelos de corpo, também temos pouquíssimos rostos diferentes.

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Falar com os NPCs é uma possibilidade indicada por We Happy Few logo no início, mas, ao fazermos isso, percebemos que não há relação entre o que é dito e as respostas. As falas parecem ligadas a um sistema aleatório, o que gera diálogos que não fazem muito sentido. O mesmo vale para as reações de Arthur durante os combates, que, apesar de espirituosas, fruto do bom texto e da ótima dublagem, também são desconexas — ele pode lamentar o assassinato de um inimigo para, logo na sequência, ironizar a morte do seguinte, sem que nada tenha acontecido para justificar essa mudança.

A criação de itens e gerenciamento da saúde do protagonista são duas constâncias em We Happy Few. Por mais que o game deixe claro que ficar sem comer ou beber não te matará, permanecer hidratado e alimentado garante vantagens especiais relacionadas à barra de fôlego, que permite correr e lutar.

O jogador, porém, vai se cansar de coletar grampos de cabelo, comida podre e trapos, enquanto os itens que realmente importam, como artefatos de cura, armas mais poderosas e até mesmo a Alegria serão estranhamente escassos. A sensação é de sempre estar vulnerável e no limite, mesmo que com os bolsos cheios e tendo que jogar coisa fora para esvaziar o inventário.

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Experimente enfrentar um grupo de personagens para perceber que suas armas, mesmo que sejam as mesmas dos oponentes, soam estranhamente fracas na comparação. Tente correr de uma turba de pessoas felizes (outra constante aterrorizante de We Happy Few), aliás, para perceber que é praticamente impossível escapar. O game parece não dar alternativas, em uma dificuldade que acaba sendo punitiva não intencionalmente, mas devido à programação mal realizada.

Isso também se reflete em bugs, com personagens flutuando, surgindo dentro das paredes ou que morrem somente de serem tocados pelo protagonista, muitas vezes levando consigo itens ou missões secundárias importantes. O sucesso de uma turba pode ser minado quando a população é capaz de ver o protagonista através de paredes ou, pior ainda, atacá-lo nessas condições.

Até mesmo o texto bem escrito e a trama elaborada acabam maculados por uma localização malfeita para o português brasileiro. Acostume-se com frases em inglês aparecendo aqui e ali, bem como frases aleatórias, provavelmente ditas por um NPC à distância, aparecendo na tela em vez do diálogo com aquele personagem que realmente importa.

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We Happy Few é absolutamente aterrorizante e assustador, conforme demonstrado pela primeira metade desta análise. Infelizmente, para os milhares de apoiadores do projeto no Kickstarter e outro número igual de jogadores que estavam aguardando pelo título, estamos falando, mais uma vez, de um game melhor descrito do que jogado. Outra ideia interessantíssima jogada no ralo por mecânicas mal programas e, quem sabe, uma ambição grande demais para as próprias capacidades.

Em seu segundo game, a Compulsion mostra potencial, tanto que motivou a compra do estúdio pela Microsoft. Por outro lado, falha no básico e mostra que ainda tem muito o que aprender na hora de levar suas ideias para o mundo real. De nada adianta a criação de um mundo fantástico e instigante como o de Wellington Wells se trafegar por ele e descobrir os seus segredos é um verdadeiro martírio, do qual nenhum comprimido mágico é capaz de nos salvar.

We Happy Fell foi testado no PC com cópia digital gentilmente cedida ao Canaltech pela Gearbox Publishing.