Análise | Tropico 6 equilibra seriedade e galhofa para ser o melhor da série
Por Jones Oliveira | •
Você provavelmente já ouviu falar pelo menos uma vez na vida que todo ditador tem uma dezena de manias e costumes excêntricos que o fazem ser alvo de piada e chacota em alguma medida. Quando Tropico surgiu lá em 2001, o jogo tirava um sarro gigantesco disso enquanto brincava de ser um simulador de construção e gerenciamento à sombra de Sim City.
De lá para cá, embora a tiração de onda continue a mesma, muita coisa mudou e a série de jogos hoje publicados pela Kalypso Media não só se leva mais a sério como também alcançou um nível de maturidade e profundidade impressionante. Prova disso é que Tropico 6 traz de volta fórmulas do passado que deram certo, descarta ideias que na prática não funcionavam tão bem e expande jogabilidade e mecânicas para áreas antes inexploradas.
Quem você quer ser?
Tropico 6 mantém o cerne de todos os outros jogos da série, não reinventando a roda e nem arriscando a ser algo que nunca foi. Isso significa que o mote continua o mesmo de sempre: você encarna El Presidente, um ditador cujo objetivo é fazer prosperar a belíssima ilha caribenha de Tropico, repleta de bananeiras e paisagens paradisíacas. Os meios pelos quais você alcançará isso, é você quem decide.
Se quiser tocar o louco, governar com mão de ferro e tornar seu pedacinho de paraíso num inferno para as pessoas, você pode. Caso a democracia lhe pareça mais atraente, você pode tocar uma administração transparente, sem falcatruas e com eleições regulares para seu povo decidir os rumos de Tropico. Ou então você pode ficar em cima do muro, mexendo alguns pauzinhos para cancelar uma eleição e outra para se manter no poder e dar uma “ajuda” à oposição ao mesmo tempo que dá alegria e prosperidade econômica à população. Mas Newton já dizia que para cada ação há uma reação, e isso não é diferente em Tropico 6.
Para absolutamente toda decisão que você toma, há uma consequência e um preço a se pagar. Decidir por ser um governante implacável implica em agradar os militaristas espalhando fortes, torres de vigia, pontos de verificação e outras construções do tipo pela ilha. O problema é que na mesma medida que isso aumenta a sensação de segurança, também faz despencar os níveis de liberdade, gerando insatisfação e irritando algumas pessoas. Se El Presidente não conseguir equilibrar isso de alguma forma, logo a cidade estará infestada de rebeldes, com ataques e revoluções deflagrados aqui e acolá para desestabilizar o governo.
Equilíbrio, inclusive, é a palavra-chave que define muito bem o gameplay de Tropico 6.
Micro e macrogerenciamento
Embora você possa escolher uma linha e estilo de governo, é praticamente impossível segui-los a todo instante. Em Tropico 6, é preciso ter molejo para lidar com as inúmeras demandas vindas das oito facções que influenciam a população da ilha. Como você já deve ter percebido, na vida é impossível agradar a todos, e o game traduz isso muito bem.
Se você resolve dar prioridade aos pedidos do Tio Sam e dos capitalistas e faz vista grossa quando a trupe socialista demanda por algo, invariavelmente esse grupo ficará descontente, podendo até mesmo orquestrar um golpe para tirá-lo do poder. Cabe a El Presidente ficar atento às estatísticas políticas no Almanaque para ver como anda a satisfação dessas facções, dos religiosos, dos monarquistas, militaristas e assim por diante, e quais as chances de elas se rebelarem contra você. Como gerir tudo isso é o grande charme de Tropico 6.
Uma das formas é seguir o caminho tradicional. Embora você tenha uma visão política definida, atender a alguns grupos da sua ilha de vez em quando não vai “arrancar pedaço”. E isso pode ser feito de diversas formas, seja construindo um sistema público de transporte gratuito para abrir um sorriso no rosto dos socialistas, baixar um decreto que reduz o custo de construção de fábricas para fortalecer os laços com os Estados Unidos, erguer igrejas e catedrais para os mais religiosos... enfim. Desde que você consiga equilibrar a balança, tudo deve ficar bem.
Se nada disso sair como planejado, é possível gerenciar essa e outras crises praticamente a nível capilar. Atendo-se ao exemplo das facções, se uma delas tiver dando muito trabalho, Tropico 6 deixa El Presidente procurar por seus líderes para “resolver” a situação – seja enviando-os a um manicômio, fazendo-os enxergarem que estão errados com uma “ajudinha” ou simplesmente encomendando uma passagem para o céu. Resolveu o problema em Tropico? Cuidado que como desdobramento isso pode ter azedado as relações internacionais da sua nação com outras potências. E aí saímos do micro para o macrogerenciamento, tendo de lidar com política externa, diplomacia, contratação de embaixadores e coisas do tipo.
Esses diferentes níveis de gerenciamento sempre existiram nos jogos da série, mas aqui eles atingiram um nível de maturidade que faz de Tropico 6 divertido e igualmente desafiador.
Ilhas, ilhotas e ilhéus
Falando em desafio, a desenvolvedora Limbic Entertainment trouxe de volta algumas mecânicas e descartou outras para tornar Tropico 6 mais desafiador, interessante e até mesmo engraçado.
A primeira grande mudança afeta diretamente o design dos mapas do jogo. Até hoje, Tropico sempre trabalhou a ideia de você ser o ditador de uma ilha, o que muitas vezes acabava limitando a gameplay pela restrição natural do tamanho do mapa, cercado pelo oceano e sem ninguém por perto. O relevo também acabava atrapalhando e tornando algumas partes da ilha inutilizáveis. Em Tropico 6, isso muda com a introdução de arquipélagos. Agora, todos os mapas do jogo têm pelo menos uma ilha central e duas satélites, que se conectam à maior por meio de pontes ou portos e que podem ser igualmente habitadas e exploradas como você quiser.
Sozinha, essa ideia já altera a jogabilidade de Tropico 6 para algo jamais visto na série. Entretanto, ela também implica em outras coisas bem interessantes, como a produtividade dos locais de trabalho e dos trabalhadores. Explico melhor: antes, a produtividade e eficiência de, por exemplo, um escritório de construção eram determinadas pela quantidade de trabalhadores e o quanto eles recebiam de salário. Agora isso muda e todo mundo em Tropico tem hora para entrar e sair do trabalho – efetivamente batendo o ponto. E o que isso tem a ver com os arquipélagos?
Ainda tomando os construtores como exemplo, se eles têm de se deslocar de barco até uma mina em construção em outra ilha, esse deslocamento levará muito tempo. Como consequência, é muito provável que ele só faça isso no dia e acabe atrasando outras obras e seu rendimento e qualidade de vida despenquem – bem parecido com o acontece com a gente quando temos de pegar um ônibus e um metrô para ir ao trabalho e mais duas conduções para voltar para casa (isso sem contar engarrafamentos).
Esse deslocamento casa-trabalho-casa também deve ser levado em consideração se você se preocupa com o bem-estar da sua população. Não adianta deixar a mina recém-construída sozinha lá na ilhota, sem qualquer infraestrutura, pois os trabalhadores sofrerão para chegar até o local de trabalho – isso se não começarem a construir barracões aos redores e a levar uma vida miserável sem diversão e acesso a qualquer serviço público básico.
Também é preciso ter cuidado com outro aspecto decorrente dessa mudança. Apesar de os mapas estarem maiores, isso não necessariamente significa que eles oferecem todo tipo de recurso. Pelo contrário, é bem possível que você não tenha absolutamente nenhum recurso e tenha de resolver isso de um jeito bem diferente: recorrendo a raids.
Essa é outra novidade implantada pela Limbic Entertainment que torna Tropico 6 mais interessante e divertido. Se estiver faltando algum recurso no seu arquipélago ou até mesmo mão-de-obra, despache uma embarcação pirata para assaltar navios carregados de recursos por aí ou para “salvar” pessoas de outras ilhas e trazê-las para a sua. Se você estiver precisando de um ponto turístico atrativo, é possível recorrer à galhofa e despachar os desbravadores dos sete mares para roubar algumas maravilhas do mundo como a Estátua da Liberdade e até o Stonehenge.
Ah, e sabe aquela conta na Suíça que ninguém mais pode ficar sabendo? Agora o dinheiro “arrecadado” e guardado ali pode ser usado para contratar os serviços de uma espécie de intermediador para fazer certos “favores” para você. Na lista de gentilezas podem estar a anulação da constituição, o silenciamento de uma facção rival, a promoção de uma campanha de imagem pré-eleições e assim por diante.
Outra mudança bem-vinda no título foi a retirada do sistema de hereditariedade em Tropico 5. Considerado por muitos jogadores como ineficiente, ele permitia a El Presidente montar toda uma dinastia, com filhos, netos e bisnetos com características únicas, para governar por décadas a fio. No papel, a ideia era interessante, na prática, não funcionava tão bem assim como mecanismo de manutenção de poder. Para isso, foram trazidos de volta os discursos presidenciais repletos de promessas vazias e até acusações contra inimigos.
Para cada característica pé no chão de Tropico 6, sempre há uma outra galhofada, escrachada e exagerada para conferir o tão prezado equilíbrio que a Limbic fez questão de deixar espalhado por todo o jogo.
Fraquejadas
Para além de tudo isso, Tropico 6 é um jogo graficamente belíssimo. Embora seja “apenas” um simulador de construção e administração, o título traz texturas invejáveis e que permitem zooms espetaculares para o jogador conferir tudo o que acontece em Tropico ali, no nível do povo. A iluminação também é um show à parte, ajudando a dar ainda mais vida às cores das construções, dos campos e do mar no nosso arquipélago. Junte tudo isso a uma trilha sonora construída toda com base na música latina e pronto, estamos realmente no Caribe.
Todavia, é irônico notar que Tropico 6 dá suas fraquejadas justamente nos pontos em que é mais forte. Em toda esta análise falei de como o jogo preza pelo equilíbrio, pela dosagem das ações etc. Isso, entretanto, desanda principalmente quando surgem demandas do tipo “atingir nível tal de segurança”. Por mais que você tente equilibrar a distribuição de delegacias de polícia e até mesmo de torres militares de vigilância por toda a ilha, esse nível não é atingido. No desespero, quando você menos imagina, toda a sua ilha está tomada por torres, pontos de controle, fortes militares e policiais e com níveis como liberdade comprometidos apenas para cumprir uma demanda e seguir adiante.
Essa loucura toda poderia ser evitada se o Almanaque fosse um pouco mais detalhado e trouxesse mais informações sobre o que está dando certo e o que está dando errado em Tropico. Num jogo que incentiva a todo instante que você acompanhe dados, faltam informações que possam ajudar você a compreender o porquê de encher sua ilha de delegacias de polícia não surte qualquer efeito sobre o nível de segurança. É a taxa de desemprego? São as construções deterioradas? Talvez os desabrigados? Você até consegue ver esses dados, mas o jogo não apresenta qualquer relação direta de causa e efeito que possa pelo menos ajudar a justificar quando algo não está dando certo.
Sobre os gráficos, há alguns problemas menores que não chegam a comprometer o jogo tanto quanto esses pequenos desequilíbrios. Não é possível, por exemplo, dar zoom enquanto se está no modo de construção com um prédio selecionado – ao tentar fazer isso, você acabará rotacionando o edifício, e não aproximando ou afastando a câmera. A forma como os menus foram posicionados às vezes também pode atrapalhar. Não há a opção de escondê-los para favorecer a visualização do cenário, ou pelo menos ajustar o tamanho dos botões. Também senti falta de um papa fixo em algum dos cantos da tela, embora isso tenha sido disfarçado com uma visão panorâmica que não é tão prática assim. E sabe a trilha sonora? Embora as músicas sejam excelentes, faltou mais faixas para embalar longas sessões de gameplay. Depois de uma horinha e pouca, elas começam a repetir e logo você enjoa.
Errata: nosso leitor Fernando Garrido destacou muito bem que, na verdade, há como dar zoom enquanto se está no modo de construção: basta pressionar CTRL e rolar o scroll do mouse. Ele também destacou que é possível ajustar o tamanho dos ícones de interface nas opções do jogo: "Options" > "Gameplay" > "Custom" > "UI Scaling Mode" e "User Interface Scaling". Obrigado pela correção, Fernando!
Por fim, uma queixa antiga: cadê as legendas em português? Um jogo do porte e do gênero de Tropico 6, em pleno 2019, não vir com legendas em outros idiomas que não o inglês é ultrajante e acaba estragando a experiência e compreensão por aqueles que não são tão chegados assim à língua bretã.
Vale a pena?
Acertando muito, mas muito mais do que errando, Tropico 6 aposta forte nas duas características que fizeram a fama da série: a seriedade e a galhofa. Pode parecer contraditório falar isso, mas é isso que os governos ditatoriais são, e Tropico abraçou para si.
As mecânicas apuradas de micro e macrogerenciamento, além dos novos mapas em arquipélagos, são um convite para jogadores que levam a sério o gênero e a série que estão em busca de mais desafio. Ao mesmo tempo, a adição das raids, roubo de monumentos e outras galhofagens conferem aquela descontração que torna o game atraente e acessível a quem só quer passar um tempinho se divertindo.
No fim das contas, Tropico 6 é não só o mais balanceado, mas também o melhor da série.
Tropico 6 está disponível para PC, PlayStation 4 e Xbox One. No Canaltech, o jogo foi analisado no PC com cópia gentilmente cedida pela Kalypso Media.