Análise | Shenmue 3 ignora 20 anos de evolução e traz experiência sem sabor
Por Rafael Arbulu | •
Quando Shenmue foi lançado em 1999 para o finado console Dreamcast (aquele que efetivamente “mataria” a parte de desenvolvimento de hardware da SEGA depois de anos em competição com a Nintendo), o mercado foi contemplado com um jogo inovador em todos os aspectos. Muito do que se conhece hoje — mundos abertos, exploração e missões auxiliares, várias vias de gameplay e storytelling ramificado em um grande arco e diversas pequenas narrativas que se amarram — provém de Shenmue. Entra o ano de 2001 e Shenmue 2 capitaliza ainda mais em cima disso.
A franquia criada por Yu Suzuki, então, pisou forte nos freios, com o icônico desenvolvedor e produtor tomando um longo hiato da indústria e deixando fãs, para todos os efeitos, sem um final digno para a história da caçada de Ryo Hazuki para vingar o assassinato de seu pai por Lan Di e a conexão de tudo isso com os espelhos do Dragão e da Fênix. Até agora: 18 anos depois do último lançamento da franquia e graças, em maior parte, ao financiamento coletivo e engajamento da comunidade, Suzuki retirou-se de sua aposentadoria e, junto da Deep Silver, nos entrega Shenmue 3, prometendo a autêntica experiência que fãs da velha guarda dos jogos tanto amaram.
E ele não mentiu: Shenmue 3 é, em sua totalidade, um autêntico segmento à franquia. Mas eu falo isso ao mesmo tempo como um elogio e uma maldição ao jogo: absolutamente todos os aspectos, bons e ruins, estão iguais ao que vimos há quase duas décadas (ou nos remasters para os consoles mais recentes). E acho que, ao final de tudo, isso pode acabar sendo muito mais desfavorável à franquia do que uma satisfação aos seus fãs.
Começando, bem, do princípio, não podemos oferecer detalhes demais sobre o enredo em si, simplesmente porque Shenmue 3 começa, literalmente, no mesmo lugar onde o segundo jogo acabou. Até evitamos gravar vídeos de gameplay neste caso porque bastante coisa é referente ao primeiro e segundo jogos e, sem a devida contextualização, leitores mais novos veriam apenas um vídeo de um cara correndo por aí e falando com pessoas.
Basta saber que, logo após o final de Shenmue 2 e o início de Shenmue 3, Ryo Hazuki, o personagem controlado por você, segue junto da garota Ling Shenghua para o vilarejo chinês de Bailu, na região de Guillin. Aqui, o seu objetivo é descobrir pistas que levem ao paradeiro do pai da moça, desaparecido em razões misteriosas.
Shenmue 3 é exatamente o tipo de jogo que eu esperava que ele fosse, sem tirar nem colocar nada. E isso é um problema: visualmente falando, há poucas melhorias gráficas e o jogo de fato se apresenta como uma sequência do Dreamcast, quase como se também rodasse, ele próprio, no Dreamcast. Salvo por alguns detalhes que raramente aparecem à tela (os dedos das mãos de Ryo, por exemplo, agora estão notavelmente separados; na época, eram blocos quadradões com linhas desenhadas). Entretanto, isso não permeia todo o jogo: Shenghua usa tranças longas nos cabelos, mas quando ela corre, por exemplo, está tudo estático, paralisado, como se ela tivesse passado um mês de laquê a ponto de endurecer as madeixas no lugar.
Parece um excesso de preciosismo e apreço a detalhes que não importam na experiência geral do jogo, o que é verdade. Entretanto, tudo em Shenmue 3 passa essa mesma vibração: seria icônico em 2004 em diante. Hoje, é só tosco. Pense da seguinte forma: imagine que, em pleno 2019 e ano de iPhone 11 Pro Max, você descobrisse um modelo perdido e ainda funcional do primeiro iPhone. Ele liga, carrega, funciona, sincroniza com o iTunes, baixa e instala apps, tudo certinho. Você pode até se divertir brincando com ele por um tempo, mas isso não significa que você o usaria em sua rotina diária, certo? Shenmue 3 é o mesmo exemplo.
Na jogabilidade, a coisa não melhora: o aspecto de exploração massiva sempre foi um dos pontos-chave de Shenmue. A série nunca disse exatamente para onde você tem que ir, justamente para incentivá-lo a interagir com praticamente todos os personagens que apareçam na sua frente. Até aí, muito que bem. O problema: você irá e voltará ao mesmo lugar por tantas vezes que não evitará pensar “Ué, mas eu falei com você há cinco minutos... você não poderia ter me dito isso antes?” É um volume de interação que parece intenso e trabalhado, porém é incrivelmente superficial e não esconde defeitos gritantes na narrativa e condução da história.
Resumidamente, a progressão do jogo segue sempre o mesmo repetitivo e lento processo: fale com todo mundo até que alguém lhe dê uma resposta, vá até o lugar e investigue mais um pouco, entre em umas quatro lutas contra capangas inimigos, volte a investigar mais e, eventualmente, você começa a enxergar algum tipo de evolução. No meio disso, salpicadas de minigames como gashapons com brinquedos (aquelas máquinas orientais que dispensam itens) que podem ser vendidos, apostas em cassinos e empregos de período parcial para complementar a renda: cortar lenha, mover carga para navios e armazéns, capturar patos e coletar e vender ervas medicinais.
Não que você vá conseguir aproveitar de tudo isso, por três motivos: o primeiro é que todo dia no jogo “começa” às 8:00 e “termina” às 21:00. Antes ou depois desse espaço, você não faz absolutamente nada. Bateu nove da noite e você está no meio de sua investigação? Paciência: você será transportado de volta à sua estadia e deverá obrigatoriamente dormir para avançar. O segundo motivo é que, bom, nenhuma dessas atividades consegue te divertir por mais do que cinco minutos — e isso se tornará especialmente irritante quando, por motivos narrativos, você se ver obrigado a conduzi-las por muito mais tempo.
A terceira razão é que sua energia está, a todo tempo, se esgotando lentamente. A mecânica de Shenmue, nos jogos originais e neste, funciona na mesma medida: Ryo deve comer para se sustentar ao longo do dia. Isso traz um papel importante em todos os pontos do jogo: na exploração, se sua energia chega ao fim, você não consegue correr (e transitar pelos cenários mais expansivos na caminhada é bem chato). Na luta, você terá pouca energia vital para enfrentar os adversários. E o processo é simples de se entender: Ryo tem que comer. Comida custa dinheiro. Ryo trabalha e ganha dinheiro. Ryo compra comida.
O problema: esse processo vai tomar a maior parte do seu tempo, todo o tempo. Sem exceção, você se verá executando tarefas rotineiras sem fazer ou sentir nenhum real progresso no jogo, simplesmente com o objetivo de satisfazer uma mecânica datada de jogo que, verdade seja dita, ainda vai te irritar muito. É como se o objetivo de ser real demais estivesse matando a experiência mais ampla de Shenmue 3 — e você vai precisar dessa energia: o jogo traz saltos de dificuldade absurdamente imprevistos em vários aspectos. Inimigos fracos que, do nada, tiram com um ou dois socos uma boa parcela da sua energia, fora o aspecto monetário: os trabalhos de tempo parcial pagam muito pouco, mas há pelo menos duas ocasiões em que o jogo vai pedir muito dinheiro de você. Mais uma obrigação que você vai executar por puro ranço.
Esse tipo de progressão, lenta e sem muito motivo, envelheceu mal com o tempo. Mas acho que nada me saltou aos olhos tão negativamente quanto o diálogo de Shenmue 3. Não é a tarefa mais fácil explicar o quão estranhas são boa parte das interações. Em uma conversa específica, Ryo perguntou ao “personagem aleatório da vila nº 18” a seguinte indagação: “Como você conhece o Sr. Yuan?” — apenas para obter como resposta: “Acho que sim”. Esse tipo trágico de conversa quebra totalmente a imersão, deixa o jogador com aquela cara de “Ué” e, lamentavelmente, é perene na maior parte do jogo. Provavelmente tratam-se de erros de tradução do japonês para o inglês, mas mesmo assim: em pleno 2019, no auge da era digital, um jogo remeter erros de tradução similares ao que se via antes da década de 1990, quando “região” ainda era um problema na maioria dos lançamentos, é imperdoável. O Google Translator faria melhor.
Por todo o jogo, até mesmo no final (sério...se você é apegado a boas histórias como eu, esse final vai te irritar. Muito!), essas falhas persistem. A apresentação de alguns personagens essenciais é feita de forma insípida, passando a impressão de que eles são mencionados e mostrados simplesmente para dar uma continuidade à história. Não há envolvimento ou aprofundamento. E aí, o jogo acaba. E você está com aquela cara de “É isso?”
Mas nem só de problemas se faz Shenmue 3: o sistema de combate, embora ainda beba muito da fonte dos dois primeiros jogos, agora está mais cadenciado e simplificado. Em Shenmue e Shenmue 2 havia uma hipervalorização na execução e combinações incrivelmente longas e complicadas. Aqui, os movimentos mais poderosos podem ser mapeados em um botão, tornando a criação de combinações mais randômica e fluída, finalizada com um golpe mais intenso. Isso é bom, pois traz um elemento mínimo de estratégia ao jogo: “spammear” somente os golpes mais fortes fará com que você fique aberto a receber diversos contra-ataques, então você ainda terá que se esquivar e defender, misturando golpes fracos e fortes, gerando um ritmo de combate.
Também há um enorme respeito à parte filosófica das artes marciais: por todos os cenários, dojos e templos dedicados ao estudo de esportes de combate — sobretudo, artes orientais (majoritariamente, kung fu, mas há também pitadas do karatê e wu shu) — mostram que o esmero da equipe de desenvolvimento em trazer algo mais realista compensou bem, ainda que em só uma parte do jogo. E as sequências animadas de combate, mesmo nas cenas de corte, são bastante divertidas e chegam a impressionar.
Agora, o mesmo não pode ser dito dos chamados quick time events, aqueles momentos de ação cinemática que exigem que você tome uma decisão rápida por meio de um prompt de comando na tela. Os QTEs são um mecanismo que geralmente trazem consequências sérias em caso de erro do jogador. Em Shenmue 3 eles se apresentam de forma linear e, se você errar, a cena simplesmente volta para o começo para você tentar de novo. E os comandos também se repetem: dois ou três erros e você decorou a sequência.
A experiência Shenmue é uma que, infelizmente, ficou lá atrás. Shenmue 3 seria um jogaço, fosse ele lançado em 2005. Hoje, a tecnologia e formatos narrativos evoluíram tanto que, em 2019, essa produção se apresenta como algo já ultrapassado, que propositalmente ignora aspectos básicos da evolução do mercado dos videogames, no intuito de oferecer uma experiência que, no final, nem é tão impressionante assim.
Sem spoilers dados, o jogo acaba, para variar, em um gancho enorme e óbvio, e o próprio Yu Suzuki já sinalizou há meses que tem o desejo de fazer continuações. A recepção do jogo junto ao público é que pode viabilizar isso, mas essa será uma corrida “ladeira acima”, como dizem.
Imagine que Shenmue 3 seja igual aquele restaurante fino onde você sempre quis ir. Você passa meses economizando uma grana para jantar no local e, quando finalmente consegue, a comida à sua frente está fria e sem tempero. Mesma sensação. Shenmue 3 é passável como nostalgia. Mas como jogo, bem, os fãs mereciam algo melhor.
Shenmue 3 está disponível para PlayStation 4 e PC. No Canaltech, o jogo foi analisado no PS4 com cópia gentilmente cedida pela Deep Silver.