Precursor das fake news: a influência de Guerra dos Mundos sobre as nossas vidas
Por Sihan Felix |

A versão acima é a brasileira, realizada em 2018, quando a original completava 80 anos de idade. Foi no dia 30 de outubro de 1938, três anos antes de lançar Cidadão Kane — filme que mudaria a história do cinema e sedimentaria aspectos da linguagem de sua arte — que Orson Welles causou um pânico generalizado. A bordo da rádio Columbia Broadcasting System (a CBS), Welles interrompeu a programação musical diária para falar sobre uma invasão de marcianos.
Acontece que, claro, tudo não passava de uma dramatização, de uma peça de radioteatro — entretenimento que era comum no Brasil, onde eram transmitidas as radionovelas. Mas a notícia surgia em tom de urgência, como uma “edição extraordinária”, o que transformou aquela clara ficção em realidade para parte dos ouvintes e fez com que a CBS batesse a concorrente National Broadcasting Company (NBC).
Em resumo, a versão radiofônica de A Guerra dos Mundos foi uma espécie de alerta para seu próprio meio, para o rádio em si, porque a evidência de sua influência ficou muito clara. Soube-se, ali, que a penetração do que era transmitido poderia causar reações reais nos ouvintes; tão reais a ponto de causar um horror generalizado. O programa, aliás, não somente levou Welles a se tornar conhecido em todo o mundo e, como dito, a realizar Cidadão Kane três anos depois, mas é reconhecido como o programa que mais marcou a história da mídia no século XX.
Somos refém da nossa imaginação?
O evento, além de tudo, teve suas influências sócio-políticas: gerou o programa de Defesa Civil dos Estados Unidos, foi utilizado em um discurso por Hitler, como um exemplo da fraqueza americana e, ainda, acabou se tornando objeto de pesquisa sobre histeria em massa — o primeiro estudo acadêmico sobre o tema.
Welles era mesmo um homem midiático. Ele não pararia de expor as interferências das mentiras sobre as verdades e como isso pode afetar a absorção do público; lançaria, pouco mais de 30 anos depois, o filme Verdades e Mentiras (de 1973). Neste, são questionadas, constantemente, as convenções estabelecidas através da dicotomia entre realidade e farsa.
Depois de tantos anos, pode ser difícil relatar com exatidão o que aconteceu naquela fatídica noite de 30 de outubro de 1938. Sendo o horror em grande ou pequena escala, a questão pode recair sobre o poder da mídia e, especialmente, sobre a responsabilidade que se tem com o que precisa ser informação. Welles, ao 23 anos, tinha a intenção de apavorar o público — de acordo com relatos sobre a sua negativa em tranquilizar os ouvintes. Para mais, enquanto o supervisor da CBS, Davidson Taylor, pedia para que a transmissão fosse interrompida, ele (Welles) se recusava, mantendo o programa no ar.
Os tempos são outros. Hoje, 82 anos depois, é possível nos certificarmos — pelo menos a maioria de nós — de cada informação que nos chega por qualquer meio. Existem ferramentas que podem evitar a construção do pânico. Ao mesmo tempo, há uma facilidade muito maior na disseminação de notícias falsas como se fossem verdadeiras e uma replicação exponencialmente mais efetiva.
É importante ressaltar o quanto o rádio, em 1938, era o único meio que poderia provocar reações tão efusivas do público. Por meio dessa mídia, o ouvinte ficava refém do seu imaginário, ilustrando mentalmente os cenários enquanto a narração e os depoimentos descreviam os acontecimentos. É um fato que tem raízes literárias e que, por isso, casou-se tão bem com a obra original de H. G. Wells, que fora escrita em tom jornalístico.
Somos cúmplices de um mundo distópico?
Porém, toda a magia pode influenciar negativamente o mundo. Precursor das fake news, o programa da CBS apelava para o emocional de quem o escutava a ponto de conseguir tanta afetação. Isso, no final das contas, é a base do neologismo da pós-verdade, sendo esta uma forma de modelar a opinião pública apelando para as emoções em detrimento dos fatos objetivos.
Então, ignorando-se os fatos, acaba que o jornalismo passa a ter a função não de informar, mas de buscar, de maneira incessante, comprovar o que foi dito. As informações perdem valor e tudo passa a ser um jogo de crenças. Isso faz com que conjuntos de valores se tornem necessários para a compatibilidade de uma notícia, circunstância que o psicólogo Leon Festinger relatou, em 1957, atestando que quanto mais próxima é a relação do ouvinte ou do leitor com uma informação falsa, mais difícil passa a ser convencê-lo da falsidade dessa informação.
A transmissão na rádio de A Guerra dos Mundos, assim, completa 82 anos como se fosse uma jovem. Firme e forte, apenas com outro corpo. Tudo pode parecer um tanto quanto distópico nesse sentido, porque ela vem sendo replicada dia após dia em nossas redes sociais sem causar o mesmo pânico.
Talvez porque já estamos tão acostumados com as mentiras que, aos poucos, elas se tornaram nossas verdades. Ou, talvez, porque estejamos carentes de notícias que nos sejam identificáveis e, nesse caso, não somente aceitamos algumas pós-verdades e fake news, mas somos cúmplices de uma guerra que se aproveita do nosso emocional e constrói um mundo fictício para, supostamente, fazer-nos bem.