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Crítica | Um Príncipe em Nova York merece muito ser revisto antes da sequência

Por| Editado por Jones Oliveira | 03 de Março de 2021 às 21h00

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Paramount Pictures
Paramount Pictures

Muitos, assim como eu, devem ter crescido assistindo a Um Príncipe em Nova York na TV aberta e rever essa obra-prima da comédia em 2021 é uma experiência realmente interessante. Muito antes das novas regras do Oscar, antes das demandas sociais tomarem conta da indústria cinematográfica, Eddie Murphy já estava fazendo um filme com muita representatividade e que, hoje, soa como uma verdadeira obra sumária da cultura negra.

O anúncio de Um Príncipe em Nova York 2 pode ter deixado muitas pessoas confusas. Afinal, por que esse é um filme que merece continuação? Por que esse filme segue tendo importância, já que ele foi lançado há 33 anos? O primeiro filme segue fresco até hoje e é impressionante ver que Um Príncipe em Nova York tem como mote a completa recusa do protagonista em ter como companheira uma mulher que fosse submissa a ele. Para além disso, o filme ainda desenvolve um romance em meio a críticas sociais contundentes, tudo com uma leveza tão grande, que o conteúdo das entrelinhas provavelmente passou bastante despercebido por quem viu o filme lá nos anos 1990.

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Para quem está com a nostalgia em mente, vale apontar que o filme está no catálogo da Netflix está com a dublagem original, com o Eddie Murphy que conhecemos através da voz de Waldyr Sant'anna.

Atenção! A partir daqui a crítica pode conter spoilers. Aliás, uma reflexão: ainda é possível dizer que há spoilers de um filme de 1988?

Simples, só que não

A trama de Um Príncipe em Nova York é muito simples. Visto superficialmente, pode ser até mesmo meio besta. Um príncipe de um reino fictício da África se revolta com as imposições do pai e resolve ir à América com seu servo para viver de forma independente e encontrar a sua noiva. Uma trama dessas pode ter toda sorte de desdobramentos, mas, aqui, ganha o que provavelmente é alguma das melhores possibilidades.

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Como estamos falando de um filme que sobreviveu ao tempo, é importante que olhemos também para a equipe. Eddie Murphy foi um comediante que conquistou um amplo público divulgando algo que não tinha tanto espaço na mídia como hoje, ou seja, a cultura negra. Eddie Murphy não apenas estrela Um Príncipe em Nova York, como criou a história que deu origem ao roteiro de David Sheffield e Barry W. Blaustein. A dupla, inclusive, voltaria a trabalhar com Murphy novamente em O Príncipe das Mulheres (1992) e O Professor Aloprado (1996).

Na direção, John Landis, de Os Irmãos Cara de Pau. Landis também foi o responsável pela direção do icônico videoclipe de "Thriller", de Michael Jackson, cuja coreografia foi revisitada em Um Príncipe em Nova York, na releitura executada pelos dançarinos que anunciam a chegada da noiva prometida de Akeem, no início do filme.

Essas curiosidades, que representam apenas uma minúscula amostra do que podemos encontrar em Um Príncipe em Nova York, já demonstram como o filme funciona muito mais pelo que representa do que por sua história de comédia romântica mais ou menos genérica (sobretudo pela estrutura clássica, em que é possível notar as duas viradas do roteiro tradicional em três atos nos momentos em que Akeem descobre o amor da sua vida e, posteriormente, quando ela descobre sua verdadeira identidade, a mesma estrutura de outros tantos filmes do gênero).

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Um Príncipe em Nova York é também o primeiro filme em que Eddie Murphy utiliza as técnicas de maquiagem pelas quais seria futuramente reconhecido. Enquanto em filmes como O Professor Aloprado já sabemos que é Eddie Murphy quem interpreta os personagens, essa estratégia foi uma divertida surpresa quando Um Príncipe em Nova York foi lançado.

Eddie Murphy interpreta, além de Akeem, os personagens Clarence e Saul da barbearia, e o péssimo cantor de smothie jazz Randy Watson. Seu parceiro de elenco, o comediante Arsenio Hall, interpreta, além do servo Semmi, o Morris da barbearia, o exaltado reverendo Brown e ainda aparece travestido como uma das possíveis pretendentes de Akeem na sequência do bar, o que, infelizmente, foi muito mal creditado como "Extremely Ugly Girl" (literalmente "garota extremamente feia").

Cultura

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Muito antes de o mundo “descobrir” que a África não é um continente pobre e homogêneo através da Wakanda de Pantera Negra, Eddie Murphy já estava apresentando uma África rica como a mostrada por Beyoncé no também muito recente Black is King. Só que ninguém notava isso. Ou poucas pessoas notavam. Eddie Murphy talvez não tenha sido levado a sério como merecia e isso justificaria demais os péssimos filmes que vimos surgir mais recentemente em sua carreira (o que aumenta ainda mais a curiosidade pelo que veremos em Um Príncipe em Nova York 2).

Mas como Murphy faz isso, se o país Zamunda sequer existe? Esse é uma das muitas pontas soltas de Um Príncipe em Nova York. Com pontas soltas, no entanto, não quero dizer que são defeitos, mas sim reais pontas de fios soltas e que, se puxadas, podem revelar a enorme riqueza cultural de Um Príncipe em Nova York. Zamunda é, na verdade, uma homenagem ao também comediante e ator Richard Pryor, que citava o país fictício em um dos seus textos.

Não posso falar pelos espectadores estadunidenses dos anos 1988, mas minha memória não me deixa esquecer de como víamos (crianças e adultos) Um Príncipe em Nova York como apenas um filme de comédia. Sem internet e apenas com a TV aberta como fonte de conhecimento sobre o mundo do cinema, nomes como o de Pryor só eram conhecidos por aficionados que sabiam os nomes dos atores de filmes como Cegos, Surdos e Loucos ou Um sem Juízo, Outro sem Razão, também populares na TV aberta brasileira.

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Eddie Murphy inverte os papéis óbvios e traz um príncipe ridiculamente rico para o coração de um dos bairros mais pobres de Nova York, o Queens (nome que, se fosse traduzido, seria “Rainhas”). Assim, o roteiro abre possibilidades para mostrar um estrangeiro, um africano nato, conhecendo pela primeira vez uma cultura que pode ser tida como afro-diaspórica, mas que, na verdade, é apenas o reflexo triste do processo estadunidense de escravidão. Uma cultura urbana e profundamente influenciada pelo imaginário americano, o gueto estadunidense é mostrado como realmente é, uma cultura essencialmente afro-americana. Os contrastes são hilários por brincar com os estereótipos mais populares desses iguais que são tão diferentes.

Com isso, o que Murphy nos entrega é uma subversão de outra história comum (e não apenas no cinema). Não é raro vermos obras que exploram as mazelas e a "cultura exótica" de povos africanos. O que Um Príncipe em Nova York faz é quase o mesmo que faz (com muito mais acidez) o personagem Borat, ou seja, chocar culturas e, com isso, revelar uma realidade que costuma ser encoberta. Akeem constantemente enfrenta o preconceito de pessoas que estão "abaixo dele". Esses choques possibilitam outro incrível salto do filme, que é o questionamento das classes sociais: afinal, o que é estar acima ou abaixo nessa hierarquia? Em termos de romance essa sacada também é excelente, já que há décadas algumas pessoas têm tentado explicar que mulheres não precisam procurar por companheiros que sejam necessariamente (e eternamente) ricos.

Para além da homenagem a Pryor, puxar os demais pontas que Um Príncipe em Nova York deixa pelo caminho é uma ótima forma de conhecer inúmeras outras coisas, desde a trilha com referências ao hip-hop até às piadas sobre Muhammad Ali na barbearia. Um Príncipe em Nova York é um excelente filme por si só, mas fica muito melhor quando passamos a entender as entrelinhas, referências e conexões, uma experiência que só é proporcionada por um olhar mais maduro que o de uma criança.

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Quanto à sequência, ela é merecida. Muito merecida. O que resta sabermos é se ousará ser tão corajosa quanto o primeiro filme.

Um Príncipe em Nova York está disponível para streaming na Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech