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Crítica | Silk Road falha ao tentar criar um Zuckerberg “às avessas”

Por| Editado por Jones Oliveira | 13 de Abril de 2021 às 10h51

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Divulgação/Lionsgate
Divulgação/Lionsgate

Em 2010, o primeiro trailer de A Rede Social, longa de David Fincher sobre os primeiros anos e polêmicas do Facebook, apresentava um Mark Zuckerberg que dizia querer transportar a experiência da universidade para a internet e, com isso, contribuir para uma vida melhor (para si). Na época, o potencial manipulador e a penetração da plataforma nas vidas das pessoas não era plenamente conhecida, enquanto o personagem interpretado por Jesse Eisenberg surgia como um idealista, ainda que com poucos escrúpulos. 11 anos depois, chega a ser surreal ver Silk Road: Mercado Clandestino tentando fazer a mesma coisa.

O filme dirigido por Tiller Russell (Night Stalker) começa com um discurso inspirador atrelado à cena da prisão de Ross Ulbricht, o criador do mercado ilegal de drogas e, depois, armas e assassinatos que é o mote do longa. Naquele momento, tanto quem acompanhava a história quanto o próprio, e também a polícia, já conheciam as atividades que eram realizadas sob a superfície da web. Porém, na exibição, o Silk Road é citado como parte de um discurso inspirador no qual o jovem, conhecido virtualmente como Dread Pirate Roberts, diz esperar olhar para trás e saber que ajudou as pessoas com sua obra.

O sabor agridoce se confirma ao longo das quase duas horas de exibição quando comprovamos não se tratar de algum tipo de negação do próprio personagem, em uma versão quase ficcional. Temos, sim, uma tentativa de romantizar a criação de um mercado online surgido a partir de ideias liberais, que excluiriam a mão forte do Estado e das leis, permitindo que os usuários comprassem e vendessem qualquer coisa usando bitcoins e a rede Tor, escapando, assim, do monitoramento e rastreamento da internet e dos sistemas de pagamento comuns.

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O próprio Silk Road, enquanto filme, afirma ser uma pesquisa jornalística com “altas doses de ficção”. O roteiro, escrito pelo próprio Russell, é baseado em um artigo publicado em 2014 no site da Rolling Stone, relatando a história de Ulbricht que levou até a criação do marketplace ilegal e sua posterior prisão. Entretanto, quem lê a publicação e assiste ao filme também tem a impressão de estar presenciando duas histórias bem diferentes.

E aqui não estamos falando apenas da inclusão do personagem interpretado por Jason Clarke (Cemitério Maldito, O Diabo de Cada Dia). O clichê do policial linha dura e que não segue as regras, acabando por ser encostado em uma unidade de crimes digitais enquanto tenta usar métodos analógicos para participar de uma investigação puramente digital serve como antagonismo à figura do próprio Ulbricht (Nick Robinson, de Com Amor, Simon), mas também a seus atos amplamente ilegais.

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Essa briga também se dá em termos comparativos, mas não vamos entrar em detalhes, aqui, para evitar spoilers sobre o que há de ficção em Silk Road. O que fica, entretanto, é a sensação de que Russell possui certa admiração pelo Dread Pirate Rogers ou, então, tenta alavancar seu próprio longa na onda de filmes que apresentam certa idealização de febres digitais ou comportamentos fora da linha, em prol do empreendedorismo — mesmo que, neste caso, a subida para o “estrelato”, entre muitas aspas, envolva a venda de armas, drogas e até mesmo ordens envolvendo o assassinato de arquivos vivos.

Erro hipster

Seria fácil categorizar Silk Road como um filme que “passa pano” para a figura de Ross Ulbricht, que se encontra preso e condenado à prisão perpétua por crimes como lavagem de dinheiro, conspiração para cometer tráfico de drogas, hacking e fraude de documentos. Da mesma forma, seria simples usar um discurso moralista para derrubar o filme, algo que nem mesmo é a intenção dessa crítica. O questionamento, aqui, é quanto à qualidade da história que é contada, assim como a tentativa de amenizar os atos realizados pelo jovem.

O filme, aliás, perde a chance de entrar em algumas das searas efetivamente polêmicas da condenação de Dread Pirate Rogers, como o fato de provas relacionadas a ele ser mandante de assassinatos terem sido apresentadas e consideradas em seu sentenciamento, ainda que ele não estivesse sendo acusado como tal. Ou, então, a ideia de que tais evidências foram dispensadas por procuradores devido à ilegalidade de sua obtenção. Pelo contrário, o caminho escolhido é o de encher o ato de sentimentos e dúvidas, enquanto artimanhas são utilizadas por seu contato, do outro lado de uma janela de chat, para falsificar os atos.

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Essa abordagem, inclusive, vale para toda a construção de Silk Road, que cerca a criação do mercado na deep web por um discurso visionário e empreendedor sobre liberalismo e até mesmo bravatas contra as autoridades que se contradizem no próprio roteiro. Não combina, por exemplo, a postura firme deste Ulbricht quase fictício com o temor que surge sempre que ele flerta com a ideia de ser capturado — uma ideia, inclusive, que ele afirma saber desde o início e que, acima de tudo, diz seguir adiante por saber que nada seria feito para mudar as coisas se não fosse preciso ultrapassar o medo de represálias.

Pinta-se, sim, a ideia de um jovem brilhante e com família de posses, que poderia aplicar suas ideias geniais para o bem. Entre startups e lojas de livros usados, elementos reais da história de Ulbricht usados no filme, também, para demonstrar o conflito entre sua personalidade arrojada e o tom mais tradicional de seus pais, surge mais uma vez a ideia de um Zuckerberg “do avesso”, cujo idealismo acabou o cegando para as reais consequências de seus atos. A diferença é que, em A Rede Social, Fincher e seu roteiro não fazem questão de fazer o criador do Facebook parecer inocente ou bem-intencionado.

O contrário aparece diversas vezes em Silk Road, como nas tentativas de manter amigos, cônjuges e familiares distantes de suas atividades criminosas ou da ideia de que ele traça uma linha de moralidade no que pode ser vendido no marketplace — ainda que não tome atitudes quando esse limite é ultrapassado. Pelo contrário, a partir de um certo ponto de exibição, Ulbricht é exibido quase como um passageiro de sua própria criação, que parece estar tomando vida própria enquanto, ele próprio, tenta apenas ocultar os seus rastros.

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Boa parte do filme, por outro lado, é ocupado por uma história fictícia, que envolve o passado problemático do agente Rick Bowden, transferido da divisão de narcóticos para a de crimes digitais, e seus problemas familiares. É um tanto interessante a ideia de termos um policial das antigas tentando se envolver em uma investigação destas sem nem mesmo saber como usar o computador, ao mesmo tempo em que novos furos de roteiro aparecem nesse aspecto tecnológico.

Por mais que a virada de Bowden seja um tanto inusitada, assim como seus próprios métodos, envolvendo citações modificadas à história real de Dread Pirate Rogers, fica a impressão de que Silk Road passa mais tempo contando outro enredo do que aquele que leva os espectadores ao filme. Quem não acompanhou a cobertura jornalística sobre o mercado ilegal, por exemplo, não vai encontrar aqui um resumo dos melhores.

O que se vê, sim, é uma glorificação de métodos que caminham às margens das regras e uma ideia de que vale quase tudo desde que suas intenções sejam legítimas. Silk Road parte de um princípio questionável, mas compartilhado pelo Dread Pirate Rogers real, para uma fábula idealista e romantizada de alguém que, no mundo real, não foi vítima das circunstâncias, ainda que, a bem da verdade, sua condenação possa ser considerada extrema e uma forma de fazer com que ele sirva de exemplo.

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As “altas doses de ficção” citadas logo no início da exibição de Silk Road se traduzem, no máximo, em uma tentativa de levar às telas como Ulbricht via a si mesmo — alguém mais esperto do que todo mundo e que viu sua criação se tornando algo incontrolável e acima das próprias capacidades. Ou nem isso, já que, como dito, o roteiro também demonstra suas tentativas de manter o controle sobre o próprio império e ir além da própria imagem de agente de mudanças.

Entre realidade, ficção e idealização, se constrói um longa que usa artifícios de edição para marcar, de forma quase cômica, os momentos de tensão ou as mudanças de alinhamento dos personagens, ao mesmo tempo em que fala pouco sobre como realmente funcionava o Silk Road ou como foi a investigação que levou a seu fim. O marketplace, sim, serviu como um marco para autoridades e usuários de internet sobre como o anonimato apresentado pela dark web poderia ser usado para levar serviços ilícitos ao alcance de qualquer um que os desejasse.

A produção, entretanto, não serve como um retrato disso, realizando esforços que não levam ao objetivo pretendido e acabam não informando quem não conhece a história e marginalizando quem acompanhou o que aconteceu. Vale, no máximo, como caricatura, tanto do próprio Ulbricht quanto do trabalho policial que levou à sua prisão.

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Silk Road: Mercado Clandestinoestreou no Amazon Prime Video em 8 de abril. O elenco também conta com Alexandra Shipp (a Tempestade de X-Men: Fênix Negra e Apocalipse), Jimmi Simpson (Westworld), Katie Aselton (The Freebie) e Darrell Britt-Gibson (Judas e o Messias Negro).