Crítica | Nomadland diz respeito à maioria de nós
Por Sihan Felix |

Na maioria das vezes, os filmes têm tentado fisgar o público somente por meio de suas histórias. A necessidade excessiva de se ter algo para contar acaba transformando o cinema em uma espécie de livro ilustrado. Fica, portanto, a habilidade de contornar esse estigma sob responsabilidade da direção, que pode dar uma vida muito própria ao roteiro. Chloé Zhao, assim, não dá somente vitalidade para Nomadland, ela dá uma alma.
A diretora — que também escreveu o roteiro (adaptado de um livro de Jessica Bruder) e montou — está muito mais disposta a encarar a simplicidade desoladora das situações do que em criar qualquer exagero. Para tanto, a opção de trabalhar com não-atores, dando espaço para que Frances McDormand interaja com eles da maneira mais desafetada possível, é um passo para que as quase duas horas do filme recebam ares de neorrealismo italiano.
A força da atuação de McDormand é tanta que, através das lentes invasivas de Zhao, é possível compreender uma vida inteira em cada olhar e gesto. Em alguns momentos, pode ser possível sentir a implosão de emoções que tomam o corpo da personagem, com tudo encontrando uma válvula de escape nos olhares e em pequenas expressões. Para mais, a exposição dela em meio ao ambiente — como quando ao boiar nua em um rio ou ao encontrar árvores gigantes — recobre-a, justamente, com um manto natural.
Ainda, não é difícil que a história de Fern seja percebida como a de uma mulher que foi forçada a se desvincular da sociedade. Isso, para além da cidade abandonada após o fechamento da fábrica de gesso e da morte do marido — sobre quem ela fala com saudade —, é exposto pela partida dos demais nômades em suas vans, deixando-a sozinha novamente. Zhao, nesse momento é dura, inclusive, intercalando a sensação da personagem de McDormand com planos detalhes de cactos espinhosos e planos gerais daquele momento de solidão.
Uma luta ainda desigual
Do mesmo modo duro, a diretora demonstra a inquietude daquela mulher ao se ver retornando à vida conjunta, em uma casa. Ela, afinal, não é uma sem-teto, mas uma "sem-casa", como diz em uma cena. A solidão que a vida lhe impôs acabou se tornando seu lar e Zhao demonstra isso com planos e cortes certeiros. Seja ao mostrar Fern "enjaulada" atrás das grades de uma escada, seja ao cortar de uma galinha livre e "linda" (nas palavras da própria) para uma servida à mesa após a ida ao forno, tudo encaminha para o incômodo dela (de Fern) em perder novamente o que a vida lhe deu: uma solidão libertária. Esta, por sua vez, é exibida na sequência seguinte, quando a protagonista, sozinha, ganha a potência das ondas revoltosas de um oceano.
A questão, enfim, é que Nomadland é tanto a história simples de uma mulher que encara a solidão contada a partir de um olhar rico e com personalidade quanto a exposição de um contraponto político-social do momento no mundo. Fern pode representar tantos que, perdidos em um mundo desumano, não têm a chance de entender qual é o melhor caminho para sair ileso de uma luta contra a própria vida. De uma forma ou de outra, o filme é, se não uma obra-prima, um trabalho a não ser esquecido pelo tempo. Porque Fern, afinal, precisa encontrar eco na luta real contra uma estrutura que diz respeito a maioria de nós.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech