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Crítica | Capone é uma fúria particular feita de experiência escatológica vazia

Por| 28 de Maio de 2020 às 20h00

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20th Century Studios
20th Century Studios

A figura de Al Capone já havia sido explorada pelo cinema em mais de uma dezena de filmes. Alguns destes criaram uma aura de perigo para a figura do mafioso e, talvez, uma manifestação de respeito – mesmo que por vias contraditórias –, como é o caso de Os Intocáveis (de Brian De Palma, 1987), no qual Robert De Niro provavelmente imortalizou em definitivo o personagem e não a figura real.

É verdade que o maior gângster da história dos EUA esteve em outras obras célebres, como Al Capone (de Richard Wilson, 1959) ou até mesmo como inspiração em Scarface: A Vergonha de uma Nação (de Howard Hawks e Richard Rosson, 1932) e a versão Scarface (do próprio De Palma, 1983). Mas, enquanto o filme de Wilson procura reconstruir a realidade da vida do criminoso e o de 1932 é preciso em emular a vergonha de estar no crime sem levar tanto em conta o processo, a refilmagem de 1983 é caricatural – como os melhores filmes do seu diretor –, construindo uma carapaça de medo e ódio ao redor de Tony Montana (Al Pacino) e exponenciando situações e frases de efeito, como “Say hello to my little friend!”

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De todo modo, Scarface era o apelido de Capone em seu círculo íntimo, graças a uma cicatriz no rosto herdada de uma briga quando adolescente, e tanto a dupla Hawks-Rosson quanto De Palma preferiram utilizar o nome Tony: Tony Camonte e Tony Montana respectivamente. Josh Trank, então, parece decidido, desde o princípio, a seguir por outro caminho: por meio de um letreiro inicial em Capone, ele avisa que não será visto qualquer charme da máfia ou a violência mais comuns em filmes do gênero (ou subgênero); será visto um homem debilitado em seu último ano de vida, dopado de remédios e com a sífilis já em domínio do seu cérebro.

Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

O dourado das fezes

Trank – que, além de dirigir, roteirizou e montou o filme –, aliás, parece querer responder à máquina de Hollywood após ter sido sufocado em sua reinvenção do Quarteto Fantástico (de 2015). Se em 2012 ele surgia como uma promessa ao comandar o filme de found footagePoder Sem Limites, Capone pode dar a entender, de algum modo, que ter sido podado e praticamente privado de decisões mais criativas magoou seu orgulho. E é provavelmente no interesse de responder com força que está o maior problema do filme em questão.

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Por outro lado, há uma certa atitude na visão do diretor sobre o intrigante último ano de Alphonse Capone (interpretado por Tom Hardy aqui). Claramente – e por mais que se exiba a mansão e as obras de artes que adornam o jardim –, o interesse está na degradação daquele homem. Não há beleza que consiga ser mais forte do que a deterioração da vida. A morte consome qualquer glamour. O homem violento, que acreditava na possibilidade de obter muito mais com boas palavras e um revólver do que apenas com boas palavras, dá lugar a alguém que urina nas calças enquanto conversa com amigos e é acordado pela esposa por ter defecado enquanto dormia.

A escatologia de Capone, para mais, algumas vezes chega a ser caricatural, no que parece ser uma forma de rebaixar a pompa que circunda aquele homem que viveu uma vida transgressora, repulsiva. O próprio roteiro, mesmo sendo fiel à neurossífilis, constrói essa repulsa também quando a personalidade do protagonista consegue vir à tona em delírios, como quando xinga Mae (Linda Cardellini) sem qualquer pudor e como, no que talvez seja o momento mais surreal do filme, empunha sua little friend dourada e, vestido com um roupão e uma fralda geriátrica, sai caminhando por sua propriedade atirando e assassinando vários funcionários.

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Nem mesmo a ilusão de Fonse (como é chamado) parece imune à degradação. Trank, que, em alguns momentos, parece encantado com o próprio trabalho – ou pensando nele muito mais como uma prova de sua própria criatividade –, mergulha, em certo ponto, quase como se fosse um pupilo de David Lynch. O dourado da riqueza e da prosperidade aliado à juventude é perseguido pela mente enlouquecida de Capone... tudo imaginado na fragilidade de uma criança e de um balão de festa: ambos, a juventude e qualquer comemoração, inalcançáveis.

De fralda

Mas Trank não é Lynch e, então, não consegue ir muito longe na construção de um universo próprio para Capone. De vez em quando, tudo parece uma cópia ou algo forçado, o que a utilização de um dos atores mais utilizados pelo cocriador da série Twin Peaks (Kyle MacLachlan) pode deixar mais claro. Juntam-se a isso algumas tentativas de abrilhantar as sequências de devaneio – como uma festa à laO Iluminado (de Stanley Kubrick, 1980) e um tsunami na lagoa – e tudo fica mais esquisito, mas de um jeito cada vez mais distante da habilidade do diretor de Cidade dos Sonhos (2001). E pior: mais distante da promessa que o próprio Trank parecia ser no citado Poder Sem Limites.

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Além disso, guiado pela direção, Hardy talvez seja um tanto inconstante, passando por momentos realmente excepcionais, como quando, sozinho, transparece a antiga personalidade insana do mafioso, e por situações que mais parecem saídas de uma animação e que causam cenas de algum humor involuntário. Nesse sentido, enquanto os xingamentos em italiano têm um efeito quase espalhafatoso, a cena escatológica do último interrogatório é, no mínimo, das mais bizarras de todo o filme. Se já havia sido mostrado um sujeito de fralda e com uma cenoura na boca ilusoriamente atirando em todos com sua metralhadora dourada, agora se vê o mesmo homem interferindo em uma entrevista sobre o principal mote do filme – o dinheiro escondido – e encerrando-a por meio de fezes e gases.

Uma fúria particular

No final das contas, Trank consegue, sim, depreciar a figura do perverso ítalo-americano, mas parece que o faz com alguma raiva. Diferente de Martin Scorsese, que, com O Irlandês, faz um contraponto para toda a mistificada glória da máfia a partir da degradação da vida, Trank não parece buscar uma experiência palpável ou mesmo sensorial. A ideia, de repente, nem mesmo pende para uma ira por quem foi o personagem-título enquanto vivo – que seria válida –, mas acaba por aceitar o caminho de quem quer demonstrar o próprio valor à força.

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Capone, enfim, pode não ser o retorno que seu roteirista, diretor, montador e financiador pretendia. Mas, pelo menos, demonstra que existem sentimentos humanos por trás de algo que, em essência, pode ser uma experiência bem vazia. As obras de arte no jardim do mafioso, retiradas uma a uma, podem, inclusive, ser o reflexo de alguém que queria destituir tudo de vida e deixar sobrar, somente, a podridão, o vazio, o fim. Mas esse glamour de uma fúria particular é consumido pela própria obra. Porque, diferente de Scorsese, Trank não percebeu que a morte consome qualquer glamour. E procurar atenção pessoal por meio dela (da morte) – que é anunciada já no letreiro inicial – talvez não seja o melhor caminho.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech