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Crítica | Sem as referências, A Vastidão da Noite é só um causo de ET

Por| 10 de Junho de 2020 às 08h15

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Amazon Studios
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Evito, tanto quanto possível, ler sobre um filme antes de assisti-lo. Evito as sinopses inclusive. Em festivais, desaprovo submissão de filmes com louros, pois a tendência é que o espectador se deixe levar pelas premiações. Alguns casos, no entanto, são exceções. A Vastidão da Noite (disponível no catálogo do Amazon Prime Video) tem chamado a atenção justamente por sua repercussão: um filme de época de baixíssimo orçamento (menos de US$ 1 milhão), com atores desconhecidos e um diretor estreante que tem coletado elogios da crítica especializada e exibe louros como o do Toronto International Film Festival.

Ao ver A Vastidão da Noite, fui tomada por sentimentos conflituosos: há algo de muito bom no filme, sem sombra de dúvida. Mas quão notável é essa obra de fato? O que há nela de tão impressionante? Esses questionamentos tomaram conta do meu tempo mais do que eu previa e decidi ir na contracorrente da maioria.

A Vastidão da Noite é um filme impressionante, de qualidade, realmente notável se levarmos em conta a direção de arte e os gastos em uma ficção científica. Descordo, no entanto, que o filme seja de fato um marco cinematográfico, um filme que ganhe fama no boca a boca dos espectadores e se firme no tempo. É, certamente, um excelente cartão de visita para Andrew Patterson, mas acredito que ele precisará de mais do que isso para se estabelecer de forma realmente relevante.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

Uma sincera homenagem

Os roteiristas Andrew Patterson e Craig W. Sanger demonstram um tremendo apreço por grandes clássicos da ficção científica. Toda a trama que acompanhamos é, inclusive, um episódio de uma série que faz referência a Além da Imaginação (The Twilight Zone). O nome da cidade em que se desenvolve a trama é Cayuga, uma referência a Cayuga Productions, a produtora de Rod Serling, criador e apresentador de Além da Imaginação, que foi ao ar pela primeira vez em 1959, mesma década dos acontecimentos de A Vastidão da Noite.

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A importância da rádio da cidade também transborda os limites da trama. É uma anedota famosa da ficção científica a história de que Orson Welles teria causado pânico em massa ao adaptar para o rádio os eventos do romance A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. Pessoas teriam acreditado que alienígenas estavam invadindo a Terra e, embora a repercussão do caso seja contestada por alguns historiadores, o caso marcou o imaginário dos fãs do gênero. A trama de A Vastidão da Noite é uma clara referência a essa história para quem está familiarizado com sci-fi clássicas e a sigla da rádio acaba sendo uma confirmação de que o espectador que ligou os pontos não está indo longe demais: WOTW é também o acrônimo de War Of The Worlds, título em inglês de A Guerra dos Mundos.

A estética, os elementos de cena (a central telefônica, a rádio, as fitas), o comportamento das pessoas de uma cidade pequena nos anos 1950, o mistério e as histórias que soam como os causos que ouvimos sobretudo no interior, somam-se em uma poderosa narrativa de ficção científica, mas tudo isso não faz de A Vastidão da Noite um filme realmente impactante.

Foi quase

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O diálogo entre Fay Crocker (Sierra McCormick) e Everett Sloan (Jake Horowitz) após eles saírem do ginásio é quase um deleite científico. Ver os personagens comentando sobre previsões tecnológicas que se realizaram ou não é muito divertido, mas não tem o peso que apresentam séries como Além da Imaginação que realmente fizeram previsões. Claro que, por ser um filme contemporâneo, não é possível esperar essa força histórica da obra, mas esse momento revela uma das fragilidades de A Vastidão da Noite: o roteiro.

Não é a simplicidade da trama que incomoda — inclusive é o mistério desenvolvido a partir dos sons, das relações entre os habitantes da cidade e das pequenas evidências que começam a surgir, que compõe a parte forte do roteiro. Se a história fosse desenvolvida dentro de 25 minutos, que era o tempo de um episódio de Além da Imaginação, talvez A Vastidão da Noite fosse muito mais bem-sucedido. Patterson e Sanger, no entanto, escrevem um roteiro de um longa-metragem, que dá origem a um filme de quase uma hora e meia. Para preencher o tempo, os roteiristas investiram nos diálogos, que até têm alguns pontos altos, mas, na maioria das vezes, sobretudo no princípio do filme, nada mais são que uma profusão de discursos de Everett, que nem são interessantes por si, nem são relevantes para a trama. É possível construir diálogos longos e rápidos que sejam realmente interessantes (vide os filmes de Woody Allen e Quentin Tarantino), mesmo que a nível de entretenimento, mas não é o caso aqui.

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Everett parece ter sido criado como uma figura que destoa dos demais habitantes da cidade, alguém que poderia ser definido como excêntrico, talvez, mas acaba se tornando simplesmente chato ao ser um bully que se acha melhor que todos ao seu redor e não há sequer um momento em que ele possa demonstrar outras camadas. Isso torna o personagem raso demais para o protagonismo que desempenha (mais uma coisa que funciona em um episódio, mas não funciona em um filme). Fay chega a ter um desenvolvimento melhor, mas ainda não o suficiente para que haja uma preocupação profunda com a personagem.

A direção de Andrew Patterson é boa e o momento em que os amigos de Fay e Everett entram em transe por causa do som gravado é realmente bonito em termos de referência aos clássicos. Ainda assim, Patterson parece se limitar muito ao tributo, fazendo com que o filme soe muito mais indie que sci-fi. A câmera que percorre longas distâncias conectando os personagens é um dos momentos memoráveis da direção, mas cria uma confusão narrativa. Embora pareça que é a primeira pessoa de um invasor invisível, o movimento de câmera acaba revelando ser o mais óbvio possível: apenas um movimento de câmera para conectar os personagens de uma forma diferente. O resultado é confuso para quem assiste, afinal, se o espectador assume que aquelas imagens são a visão em primeira pessoa de um alienígena, logo começa a levantar uma série de especulações e questionamentos que acabam frustrados quando a câmera enfim revela ter uma função mais estética que narrativa.

A ideia de fazer um filme dentro de um filme, de estarmos assistindo a um episódio de uma série, é uma homenagem interessante, mas é confuso, motivo pelo qual o diretor fica retomando essa ideia ao longo do filme, soando como se ele simplesmente quisesse ficar rememorando a estratégia, sem significado narrativo algum, ao menos que eu conseguisse captar. Além disso, a direção de Patterson, bastante contemporânea apesar do saudosismo, soa muito anacrônica quando vista em escala de cinza com os ruídos típicos das TVs antigas e o resultado é algo quase amador.

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A Vastidão da Noite é um filme interessante, mas faço minhas apostas de que não é tão relevante e muito menos um marco cinematográfico. Além disso, me incomoda que um filme exija do espectador um background para se tornar mais interessante, quando o melhor é que essas referências sejam apenas detalhes que adicionam profundidade cultural à trama. A Vastidão da Noite não é um filme marcante justamente porque, se subtraídas as referências, sobra muito pouco de realmente aproveitável.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech