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Conheça a nova sci-fi brasileira com sertãopunk, cyberagreste e amazofuturismo

Por| 08 de Fevereiro de 2020 às 08h37

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Vitor Wiedergrün
Vitor Wiedergrün

Entre as grandes belezas de nosso país, estão a miscigenação e a troca intensa de múltiplas culturas, que ao longo das décadas criaram novas e ricas formas de expressão. Algumas delas passaram a fazer parte de nossa própria identidade e, desde então, nunca mais paramos de experimentar. E, embora as produções dos gêneros de fantasia e ficção científica sejam relativamente jovens por aqui, dá para dizer que estamos perante a uma geração que vem inovando a partir de subdivisões curiosas, a exemplo do amazofuturismo, tupinipunk, cyberagreste e sertãopunk.

Bem, antes de chegar a esses novos termos, é preciso remontar um pouco da nossa história sci-fi. Jeronymo Monteiro, um jovem de família humilde, morador do bairro do Brás em São Paulo, foi uma figura primordial para o início da nossa própria ficção científica. O Brasil já olhava para esse lado, com O Imortal, de Machado de Assis, e O Doutor Benignus, no final do século XIX, mas foi com Monteiro é podemos dizer que tivemos algo genuinamente tupiniquim.

Influenciado por H.G. Wells, Monteiro, sob olhares de desaprovação do pai, insistia em querer criar suas próprias tramas e, em 1933, ele conseguiu: com o pseudônimo Ronnie Wells, publicou O Colecionador de Mãos, considerado o primeiro romance policial do país, com o primeiro personagem detetive nacional. Antes mesmo desse lançamento, Monteiro já vinha se destacando como jornalista na revista Cruzeiro e no Diário de São Paulo. Depois de trabalhar no Correio Paulistano, nos anos 1950, foi chamado pela Editora Abril para ser o primeiro editor e responsável pela revista do Pato Donald. Em 1964, fundou a Associação Brasileira de Ficção Científica.

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Durante toda sua trajetória, até sua morte, que aconteceu no início dos anos 1970, ele publicou várias histórias, personagens e cenários que mesclam autores do século XIX, a exemplo de Júlio Verne e Mary Shelley — mas com o nosso próprio “tiquinho de carimbó”.

E vejam bem: em toda a história da ficção científica, somente mais recentemente é que vemos mais autores negros, com o afrofuturismo. Monteiro, que tinha pele escura, raízes humildes e chegou a encarar os primeiros anos da Ditadura Militar, também se destaca por ser um autor de representatividade entre 1920 e 1970.

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Uma salada de referências

Entre os anos 1960 e 1970, tivemos a primeira geração de escritores de ficção científica no país, a chamada “GRD”, sigla que vem do nome do editor Gumercindo Rocha Dorea, que publicou em sua editora obras como O Valete de Espadas, de Geraldo Mello Mourão, e Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz, além de títulos de Zora Seljan, Fausto Cunha, entre outros.

Nas décadas de 1980 e 1990, mais escritores e fãs passaram a se reunir e desenvolver trabalhos com uma identidade próxima de nossa realidade, por meio de clubes, fanzines, grupos de role playing, games e quadrinhos. Editoras como a Record passaram a se dedicar a esse filão, e obras clássicas de autores como Isaac Asimov, Ray Bradbury e Philip K. Dick podiam ser encontrados facilmente.

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Isso tudo influenciou uma nova leva de autores nacionais de ficção científica, que vem misturando várias referências em narrativas mais visuais em conceitos inovadores na nossa cultura.

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Tupinipunk, amazofuturismo e cyberagreste 

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Nos anos 1990 já víamos trabalhos do ciberpajé Edgar Franco, quadrinhista mineiro que projeta uma sociedade distópica pós-humana. No começo de 2000, acompanhamos o surgimento do conceito chamado de tupinipunk, que a página Brasil Tupinipunk define como “subgênero satírico da ficção científica do Brasil”. Assim como o ciberbarroco, a ideia é agregar às narrativas sci-fi elementos de nossa própria cultura.

Amazofuturismo e cyberagreste são termos que surgiram nos últimos tempos para tentar classificar obras de ficção especulativa com temáticas regionais, mais especificamente situadas (ou que remetem a tradições e questões sociais ou culturais) na floresta amazônica e no nordeste, respectivamente. Como nordestino, não posso falar muito sobre o amazofuturismo. Sobre o cyberagreste, o termo vem de uma série de ilustrações do gaúcho Vitor Wiedergrün”, explica Zé Wellington, que, ao lado de Luiz Carlos B. Freitas e Walter Geovani, criou o romance gráfico Cangaço Overdrive.

O citado Vitor Wiedergrün ganhou destaque nas temporadas recentes por desenvolver arquétipos da cultura nordestina e do cangaço com inspiração cyberpunk. "Eu sempre gostei da cultura brasileira e achava estranho não ver nada dessa cultura em obras de ficção e fantasia. Com o tempo, comecei a pensar e imaginar algumas fusões e, logo de cara, pensei como seria o Brasil em um futuro cyberpunk. Fiz algumas pesquisas e uns esboços de vestimentas do sul e do nordeste, mas acabei optando por iniciar os desenhos voltados para o sertão cyberpunk, daí o surgimento da série Cyberagreste", diz, em entrevista para o UOL Tab.

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Ideias parecidas estão presentes no material do ilustrador João Queiroz, que segue a linha amazofuturista. “Alguns meses antes de criar a ilustração Cyberamazon, eu estava interessado no cyberpunk e toda sua teoria e estética. Fiz alguns trabalhos com esse tema e logo percebi que a estética atual do gênero estagnou em um retrofuturismo dos anos 1980, porque, claro, Blade Runner, Akira, Alita e Ghost in the Shell continuam sendo grandes fontes de inspiração”, comentou, também para o UOL.

Mesmo que componentes da tradição oriental não façam parte de nossa história geral, isso tudo vem sendo trazido para cenários nacionais. “Isso não faz parte da minha realidade, então pensei: 'por que não trazer o cyberpunk para o Brasil?", questiona Queiroz.

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Cyberagreste ou sertãopunk?

Mesmo que a intenção seja semelhante, há uma certa divisão no entendimento sobre o conceito da mistura entre o cyberpunk (ficção científica com elementos distópicos e futuristas) e o steampunk (sci-fi com estética da "Era a Vapor" do século XIX) com elementos brasileiros. O autor nordestino Zé Wellington explica melhor. “Ainda que seja possível entender que o Vitor (Wiedergrün) tenha criado essa série pela admiração estética que ele tem pelo nordeste, há alguns equívocos nas representações dos nordestinos nelas, algumas inclusive podendo reforçar estereótipos que são combatidos pelos autores da região”, afirma.

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“Certamente não era a proposta do ilustrador que o nome de sua série de ilustrações se tornasse um movimento literário, esta associação aconteceu após uma série de reportagens que repercutiram o trabalho dele. Nesse sentido, um novo termo foi proposto pelos escritores nordestinos Gabriele Diniz, Alan de Sá e Alec Silva: o sertãopunk. Levando em consideração que este termo é bem mais abrangente e cunhado por quem faz ficção especulativa na região, eu tenho preferido classificar meu trabalho com ele.”

Um exemplo o sertãopunk é Cangaço Overdrive, uma história em quadrinhos lançada em 2018 pela editora Draco e que aborda o futuro do Ceará em um cenário de seca, em uma terra esquecida pelo governo. “Quando escrevi Cangaço Overdrive, eu estava entrando num processo muito pessoal de tentar trazer elementos da minha realidade para as minhas histórias. Quanto mais eu explorava os elementos regionais nordestinos, mas eu via que existiam ali temas muito contundentes e necessários”, destaca o criador Zé Wellington, que teve ao seu lado os desenhos de Luiz Carlos B. Freitas.

Contudo, o roteirista afirma que sua trama não veio para estabelecer um rótulo. “Classificar isso com algum nome só veio depois e foi feito pelos leitores, não por mim.”

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E como será daqui para frente?

Zé Wellington pretende lançar ainda este ano uma continuação de Cangaço Overdrive e uma adaptação do clássico cearense Luzia-Homem. “Ainda que eu trabalhe com histórias que extrapolam a realidade, Cangaço Overdrive surge trazendo questões que nos afligem até hoje, como exploração pelas grandes corporações e xenofobia. O que mudou um pouco nos últimos tempos foi o meu cuidado na hora de construir essas histórias sobre a minha região e o meu estado. Boa parte da ficção científica e fantasia que li durante toda a minha vida é feita fora do nordeste, e eu sei que alguns problemas de representação do meu próprio povo foram encravados lá dentro de mim. Buscar mais informação e leitura de autores locais tem ajudado a evitar estes equívocos”, reflete.

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Atualmente, há toda uma geração de autores trabalhando em ficção científica autoral com inspiração em nossa própria cultura, a exemplo de Gabriele Diniz, Alan de Sá, Alec Silva, Ricardo Santos, Ian Fraser, Hugo Canutto, Airton Marinho e Flavio Luiz.

“Mais autores nordestinos ganhando espaço e recebendo o devido reconhecimento por seus trabalhos. Estar longe do eixo sul-sudeste é um desafio diário para quem produz nas regiões nordeste, norte e centro-oeste. Chegou a hora de dar visibilidade aos escritores e artistas destas regiões”, frisou Zé Wellingon. “Tem muita gente querendo ler histórias do gênero especulativo ambientadas no nordeste. Penso que nossa cultura é única e tem um apelo universal”, finaliza o autor.