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A expectativa e a contaminação pelo hype – fugindo do lago de Narciso

Por| 06 de Abril de 2018 às 17h16

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The Daily Meal
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O público tem um poder imenso sobre o que chega ao cinema e ao home video. E, sem dúvida, define o que chega ou não às redes de exibição ou às prateleiras das lojas. Cientes disso, os responsáveis pelo marketing podem construir verdadeiras hipérboles e são, fatalmente, parte de um possível fracasso. Em resumo, é uma faca de dois gumes: se não há divulgação massiva, não há público suficiente para pagar o que foi gasto na produção; se a divulgação é tanta que cria o famigerado hype, a possibilidade de fracasso é o boca-a-boca após as primeiras exibições. Mas aí já passou a estreia e o filme arrecadou milhões. O hype funcionou. (In)felizmente não é tão simples assim.

Além de um final de semana de estreia dificilmente cobrir o orçamento de uma produção milionária, os custos com divulgação também são altos. Na escala de home vídeo, há os custos de direitos, confecção, distribuição... é tudo notoriamente dispendioso. Juntando isso ao fato de que a disseminação de opiniões ficou bem mais prolífica com as redes sociais, as chances de expectativas serem destroçadas é gigante. Isso porque o sentimento de satisfação de expectativa é, muitas vezes, maior do que qualquer filme. Não se está preparado para ter expectativas não satisfeitas. É ruim. O ingresso foi caro. O DVD não estava em promoção.

No terceiro capítulo de Hollywood Hype and Audiences: Selling and Watching Popular Film in the 1990s, Thomas Austin fala da ambivalência do hype ao analisar o caso do filme Instinto Selvagem (1992):

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"O 'hype' era muitas vezes rotulado como desonesto: uma promessa que provou ser falsa. E para alguns espectadores, os próprios mecanismos de extensão que envolvem o texto dispersável podem ser um motivo para evitar o filme. Nesses casos, o padrão de (super)exposição sinaliza a falta de valor social e cultural, tanto por parte do filme como por sua audiência assumida. Para outros, no entanto, o 'hype' contribuiu para o 'evento' de fazer fila e assistir ao Instinto Selvagem, uma experiência qualitativamente diferente daquela oferecida por filmes 'menores'. Nessa conta, as reações do espectador são moldadas por uma atmosfera de antecipação compartilhada e pela experiência coletiva do filme no espaço público do cinema"

Ambos os casos do hype resultam na desfiguração das opiniões. Uma mutação causada pelo marketing, substanciada pela obra e consolidada pelo contato com inúmeras opiniões parecidas. Se não há satisfação com a obra, fica a necessidade de encontrar satisfação para a decepção. E se a produção satisfaz, trata-se de uma obra-prima instantânea. Isso, de fato, é muito fácil de encontrar. Desde palavras que desmerecem filmes como Rashomon (1950), de Akira Kurosawa:

A redações que elevam Transformers: A Vingança dos Derrotados (2009) à excelência:

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É tudo muito frágil. A verdade é que um filme não tem culpa (positiva ou negativa) de qualquer expectativa criada. Nem mesmo um texto crítico (ou não) pode ser o culpado. Porque expectativa é algo pessoal, íntimo. É impossível não se contaminar com um hype. Mente quem diz que jamais cria expectativa. É natural. É humano. Mas a separação do que se espera (ou do que foi impelido a esperar) precisa ser realizada, especialmente pela crítica especializada, que não raro recai em análises com frases como “O filme é melhor do que eu esperava”, “esse filme é uma decepção” ou “esperava mais”.

É assim que o papel da crítica tem se tornado controverso. Enquanto servia de ferramenta para aquisição de conhecimentos (não somente cinéfilos), a apreciação era detalhista. Hoje, porém, é possível notar a lenta contaminação causada pela expectativa: a construção textual baseada no hype tem se difundido. As críticas têm revelado um desejo desmensurado de confirmarem os filmes como merecedores do marketing hiperbólico ou desmerecedores de tanta divulgação positiva, tornando-se uma espécie de jogo dos erros.

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Os textos demonstram o enorme prazer dos autores em terem suas expectativas satisfeitas, relatando muito mais do que esperava do que do que viu; ou, ainda, revelam uma profunda decepção, construindo falhas, incoerências e profundidades que são frutos de um sentimento pré-filme. A leitura servirá, portanto, para os leitores com um envolvimento parecido se sentirem identificados e felizes por lerem alguém que, supostamente, possui mais bagagem sobre cinema.

Se a crítica não concorda com a expectativa do leitor, surge o caos:

A profundidade está se perdendo. A crítica como arte, como texto de literatura, como objeto de estudo e de conhecimento está sendo diluída. Tudo isso sendo apoiado por uma sociedade que, contaminada pela mídia, cria expectativas, cede ao hype e, enfraquecida, é hipnotizada, acreditando na possibilidade de pensar sozinha. Só que um dos objetivos da crítica verdadeira, da arte de escrever a crítica de cinema, é ensinar a pensar ou, ao menos, indicar caminhos, propor questionamentos. Como podemos ler na epígrafe de O que é cinema?, de André Bazin, “[a] função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte”. O problema é que a maior parte da crítica está cometendo o suicídio de querer se tornar cúmplice, de querer entrar no hype e ser marketing do crítico. Um arremedo de opiniões sem embasamento que buscam serventia como lagos de Narcisos.

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No artigo Crítica de cinema: história e influência sobre o leitor, Regina Gomes descreve o esqueleto básico da maioria das críticas contemporâneas:

A disposição do discurso crítico também é muito importante, uma vez que este deve estar organizado de maneira atrativa para o leitor. Com efeito, Bordwell afirma que a crítica cinematográfica veiculada pelos jornais compõe-se de quatro elementos básicos: “uma sinopse condensada, destacando os momentos mais intensos, porém sem revelar o final do filme; um corpo de informações sobre o filme (gênero, origem, diretor ou estrelas, anedotas sobre a produção ou a recepção); uma série de argumentos abreviados e um juízo a modo de resumo (bom/mau, boa tentativa/pretencioso desastre, de uma a quatro estrelas, escala de um a dez) ou uma recomendação (polegar para cima/polegar para baixo, veja/nem se aproxime)”. A ordem pode variar, mas de um modo geral, abre-se o texto com um juízo rápido, depois uma sinopse e uma série de argumentos sobre as interpretações, lógica da trama, o roteiro, etc., conecta-se isto com as informações sobre o filme e, finalmente, faz-se uma crítica reiterando seu juízo.

*Texto extraído do trabalho de conclusão de pós-graduação em cinema Espelho de um Lago Mítico – para resgatar o cinema de um limbo de existência ilusória, de Sihan Felix