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Jogar nos protege de ter problemas de memória? Sim e não; entenda

Por| 02 de Janeiro de 2021 às 14h00

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Você provavelmente já gastou várias horas preso em um jogo de lógica e/ou concentração, como palavras cruzadas, caça-palavras, cubo mágico ou até mesmo esses jogos de celular cujo foco é fazer alguma brincadeira com as palavras, encontrar uma solução para um determinado problema ou algo assim, em que se precisa quebrar a cabeça, certo?  Mas será que você sabe os benefícios que esse tipo de jogo pode trazer? Acontece que esses jogos têm muito mais impacto no seu cérebro do que se pode imaginar. E justamente para compreender esse impacto, a equipe do Canaltech conversou com especialistas da área. 

A princípio, é interessante ter em mente quais são os efeitos que esses jogos acabam tendo em nosso cérebro. De acordo com Naim Akel Filho, psicólogo e professor do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), todas as atividades que envolvem linguagem são excelentes estimulantes dos processos mentais-cerebrais. São as melhores “vitaminas” para o sistema nervoso central. Aquelas que envolvem a atenção concentrada são importantes para a atividade mais fundamental dentre todas as funções mentais.

"A percepção, a memória e o pensamento são dependentes da atenção, pois é o processo atencional que seleciona aquilo que o cérebro vai se ocupar e aquilo que vai ser ignorado", aponta o especialista. Também é possível destacar que as atividades “desafiantes” que exigem concentração, estratégias de enfrentamento e de resolução de problemas são indicadas para descarregar tensão e aumentar a resistência ao estresse.

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Naim explica que o neurotransmissor dopamina é fundamental para várias funções mentais-cerebrais, dentre elas a memória, a capacidade de concentração, a motivação e o prazer diante das atividades da vida. Baixos níveis dessa substância no cérebro repercutirão em desmotivação, fadiga, problemas de memória, baixa libido e dificuldades em sentir prazer: "Uma das melhores maneiras de aumentarmos a disponibilidade de dopamina no cérebro é desafia-lo com atividades novas, que exijam concentração e buscarmos situações prazerosas. Novas aprendizagens, prazer e recompensa podem ser obtidos em jogos e desafios e desta maneira funcionarem como combustível para um bom funcionamento mental".

Dr. Luiz Scocca, psiquiatra pelo Hospital das Clínicas da USP, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da Associação Americana de Psiquiatria (APA), acrescenta que o cérebro é constantemente bombardeado por informações, que entram pelos órgãos dos sentidos, e nossas memórias nos fazem viver emoções boas e ruins, além de se combinarem para juntamente com nossa criatividade e intuição gerar novas ideias.

"Tudo isso é muito bom: nos deixa atentos ao que acontece a nossa volta, até mesmo nos protegendo de perigos. Mas já sabemos exatamente tudo que acontece quando nos concentramos, quais partes do cérebro são estimuladas ou inibidas, como nosso estado de ânimo interfere? Ainda não: há um quebra-cabeça de bilhões (ou serão trilhões?) de peças para ser montado por tantos pesquisadores pelos próximos tantos séculos", diz o psiquiatra. 

Memória

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Até aí tudo bem, mas e quando se fala de memória? Do que se trata, exatamente? Bom, de acordo com o que aponta Naim Akel Filho, a memória é a função mental/cerebral responsável pela nossa identidade e pela nossa personalidade. Aquilo que desejamos, de quem gostamos, nossos planos e desejos, nossas crenças, nossa percepção de nós mesmos e do mundo, são completamente dependentes de nossa memória. A perda desta competência nos leva a uma situação de desorientação, descontrole e dependência.

Segundo Luiz Scocca, para aprender, temos que focar e isso significa ignorar alguns estímulos, filtrá-los. Muitas substâncias são importantes para a memória em diferentes partes do cérebro. O Córtex pré-frontal, por exemplo, está muito relacionado com a compreensão de significados e conceitos. Aqui, a noradrenalina é uma substância extremamente importante. Já na amígdala cerebral, as emoções são reguladas: tem a ver com nossos medos, experiências ruins. No hipocampo se dá o reconhecimento de objetos e memória espacial, além da memória de longo prazo.

"Outras substâncias estão envolvidas com a memória, como a serotonina, a dopamina, a acetilcolina, e isso em várias partes do cérebro: talvez ele todo tenha alguma influência nas diferentes memórias e tudo que essas elas podem fazer com nosso comportamento", indica o especialista.

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Questionado sobre a importância de estimular a memória e a lógica, Scocca afirma: "Para o desenvolvimento de um indivíduo tem toda a importância. Novos conhecimentos, repetir leituras e lembrar de coisas aprendidas e esquecidas até não esquecer mais, treinos com exercícios com situações diferentes, tentar escrever textos, pintar, cantar, tocar, jogar um jogo estimulante, tudo isso é aquisição de cultura e desenvolvimento do intelecto".

Então, também nesse sentido, muitos jogos administrados em tempo e quantidade adequada podem melhorar muito todos os aspectos da cognição, já que a coloca em situações de acesso a conhecimentos, já adquiridos ou novos, e exigem o aprendizado de uma sequência de tarefas e a organizapção do pensamento para atingir os objetivos.  

Dr. Luiz Scocca ainda aposta em outro benefício no simples ato de jogar: o escapismo. "Nós adoramos jogar! É estimulante, desafiador, um desejo de se superar, um prazer imenso de avançar em cada fase, ou concluir uma tarefa enquanto estamos nos entretendo. Não que não possa ser sério: jogos têm a ver com competência e isso nos move muito na vida. Fora que durante algum tempo ficamos distantes dos problemas do dia a dia. Um pouco de escapismo faz bem à saúde mental", expõe.

O especialista ressalta: "Então já falamos vários pontos positivos, e tem outros: quanta gente não conheci que aprendeu inglês através dos jogos, memorizou países e capitais, desenvolveu concentração, entendeu química, física, biologia, história... mas isso quer dizer que jogar nos protege de ter problemas de memória? De ter problemas de concentração? Veremos que não é bem assim". 

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Jogos x doenças: uma polêmica na medicina

De acordo com Dr. Natan Chehter, geriatra pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, a questão da prevenção de doenças neuropsiquiátricas e Alzheimer ainda está sendo bastante estudada. O profissional acredita que, se a pessoa tiver feito essas atividades ao longo da vida, isso realmente pode postergar o aparecimento de uma doença como o Alzheimer, por exemplo. Mas fazer uma intervenção em curto prazo e provar que isso previne ou adia o Alzheimer é algo controverso.

"Na prática, o que a gente observa é o seguinte: as pessoas que fazem esse tipo de atividade em qualquer fase da vida ganham em curto prazo, no sentido de atenção, no sentido de melhorar funcionalmente. Então elas conseguem exercer tarefas do dia a dia um pouco melhor, conseguem repetir as tarefas que elas treinaram com mais facilidade. Na intervenção de curto prazo, você acaba tendo benefícios de curto prazo", observa o geriatra.

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Tendo isso em mente, questionamos o seguinte para o geriatra: em caso de pacientes que já tenham alguma doença, como Alzheimer, por exemplo, esses jogos de memória/lógica podem ajudar em alguma coisa? Natan responde que os pacientes que têm Alzheimer ou que têm alguma outra doença relacionada à memória ou alguma demência eventualmente podem se beneficiar desses joguinhos no sentido de tentar atrasar a progressão da doença. "Isso também é fruto de estudo, ainda não se tem certeza, mas algum benefício até pode ser observado no sentido de você adiar a progressão, manter a pessoa num grau de funcionalidade maior por mais tempo, embora não se tenha a noção de que eles combatam a doença fazendo com que ela desapareça", disserta.

O geriatra aponta que essas atividades podem melhorar/amenizar os sintomas em algumas fases da doença, principalmente nos momentos iniciais, quando a pessoa ainda tem capacidade de fazer essas atividades e aproveitar delas, mas se uma atividade for muito complexa para esse paciente, não será benéfico.

No entanto, como o próprio Natan alertou, essa questão é alvo de polêmica entre os especialistas. Na questão em relação a jogos ajudarem a pacientes que já tenham alzheimer, Luiz Scocca diz: "Terei que responder com um retumbante não! A não ser que consideremos jogos e brincadeiras que envolvam aspectos mais afetivos, em grupo, com a aproximação e envolvimento de pessoas queridas, sejam familiares, sejam cuidadores dos pacientes, mas não pelo aspecto intelectual. Não há evidências que o uso que um jogo de memória traga melhora cognitiva em uma pessoa que já tenha a doença instalada".

Segundo Luiz, muitos pesquisadores sérios dirão simplesmente que não, e de fato muitos trabalhos bem elaborados foram inconclusivos ou concluíram que não previnem tais transtornos. Talvez possam ter outras funções preventivas, no campo da socialização, e então prevenir a depressão, por exemplo. Ou que em uma pessoa normal o treino da memória e da lógica pode se dar através desses jogos, mas não as doenças. 

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No entanto, o próprio psiquiatra menciona um grupo de pesquisadores que diz o oposto. Trata-se de um grupo da Universidade da Pensilvânia que desenvolveu um programa de treinamento cognitivo para a manutenção por mais tempo da capacidade de realizar as atividades do dia a dia. Conhecido como ACTIVE (Advanced Cognitive Training for Independent and Vital Elderly) esse treinamento mostrou através de trabalhos baseados em evidências científicas resultados realmente satisfatórios.

"Mas, note que é todo um programa de treino mental — imagine como a recuperação de uma lesão grave da coluna que com fisioterapias específicas e muito tempo de dedicação à pessoa ao final consiga recuperar algum movimento. O ACTIVE é complexo, acompanhado por equipes multiprofissionais, e não é estimular a jogar palavras-cruzadas, que é muito legal, mas terá pouco efeito sobre o paciente com um quadro demencial grave como esse", conta o psiquiatra. 

Naim concorda com o ponto de vista de Luiz, e reafirma que não há evidências de que exercícios de memória tenham qualquer efeito no desenvolvimento dos sintomas de Alzheimer. "Há um indicativo de que busca e treino de novas habilidades ou competências possam ajudar a minimizar as perdas cognitivas e a depressão que caracterizam este quadro".

Com isso, o psicólogo sugere que, algo que não gera dúvidas, é que esses jogos podem funcionar para descarga de tensão, por exemplo. "O estresse emocional ocorre em três fases: uma fase de alerta, quando o organismo entra em estado de excitação pela liberação da adrenalina; um estágio de resistência, quando há a liberação de cortisol no organismo e a fase de exaustão. O problema está na exaustão. É aí que o organismo sofre e se desorganiza. Prevenir a exaustão, descarregando tensão através de atividades lúdicas, desafiadoras e prazerosas, aumentarão a probabilidade de manutenção da saúde mental", aponta Naim.

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Além dos jogos de concentração

De acordo com o Dr. Natan Chehter, todas as atividades que sejam estimulantes, inclusive as físicas, podem contribuir na questão de atenção, de funcionalidade, regularidade de sono... então isso tudo interfere na questão da memória. Além de atividades como joguinhos e treinos cognitivos propriamente ditos, com neuropsicólogos, o geriatra incentiva a fazer atividades que sejam desafiadoras, como aprender um novo idioma, aprender novas habilidades motoras (costurar, cozinhar).

"Uma atividade que seja desafiadora do ponto de vista cognitivo, aprender algo novo, sair da zona de conforto, ajuda no desenvolvimento da pessoa em qualquer fase da vida. A curva de aprendizado, a medida que vai passando o tempo, é um pouco mais lenta. Então ensinar uma pessoa idosa a aprender algo novo pode ser muito mais devagar do que um jovem. Mas, na prática, a gente nunca deve parar de aprender", aponta.

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Naim concorda com os benefícios de novas aprendizagens e desafios como aprender a tocar um instrumento, aprender um idioma e ainda incentiva a impor-se novos desafios como escrever memórias, organizar suas fotografias e até... saltar de paraquedas. "Estas atividades exigirão grande concentração e desafiarão o cérebro liberando neurotransmissores como a dopamina, a acetilcolina e a serotonina, indispensáveis para seu bom funcionamento e estimularão novas conexões entre os neurônios (sinapses), o que qualifica o cérebro", explica o psicólogo.

Por sua vez, Dr. Luiz Scocca indica a alimentação saudável e principalmente as atividades físicas, na medida que cuidam do sistema cardiovascular, pois a liberação das substâncias envolvidas na atividade aeróbica, fazendo o coração bater mais rápido, melhora muito a cognição. "Não é interessante que quando sabemos uma coisa muito bem, à qual acessamos em nossa memória com muita facilidade dizemos que sabemos "de cor"? Cor vem do latim cordis, que significa coração. Vem de uma expressão do francês savoir par coeur, de quando não se sabia onde nossos conhecimentos, habilidades intelectuais e mesmo sentimentos eram formadas: associavam-nas ao coração. Mas não é que há uma evidência científica nessa expressão? Cuide de seu coração para saber as coisas de cor", conclui o psiquiatra.