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O Show de Truman — Os 20 anos de um filme que estava apenas começando

Por| 04 de Julho de 2018 às 12h05

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O Show de Truman — Os 20 anos de um filme que estava apenas começando
O Show de Truman — Os 20 anos de um filme que estava apenas começando

Há 24 anos, Jim Carrey não havia alcançado grande destaque nos cinemas. Sua carreira se resumia a alguns papéis coadjuvantes (como em Meu Amante é de Outro Mundo, de 1988) e a filmes realizados para TV. Foi justamente em 1994 que a carreira desse que é um dos comediantes mais queridos da história do cinema foi catapultada. Nada menos do que três filmes de grande bilheteria tiveram o protagonismo de Carrey: Ace Ventura: Um Detetive Diferente, O Máskara e Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros. O primeiro custou 11 milhões de dólares e arrecadou 107 milhões (quase 10 vezes mais); o segundo teve o orçamento em 18 milhões e a bilheteria em 351 (quase 20 vezes mais); e aquele Debi & Lóide custou 16 e arrecadou 247. E isso em se falando somente de bilheteria de cinema.

Mas o ator não era exatamente querido pelos colegas de elenco. No ano seguinte (1995), quando interpretou o Charada no espalhafatoso Batman Eternamente, muitas críticas em todo o mundo citavam a dificuldade que era controlar os trejeitos e maneirismo de Carrey. De fato, ele surgira ao estrelato após um ano incomum para alguém ainda sem grande expressão, o que aparentemente internalizou a máxima do Stanley Ipkiss ao utilizar a máscara: “Que demais!” (na versão brasileira).

Mais dois filmes vieram antes de Jim Carrey dar sinais de que poderia ser um ator versátil: Ace Ventura 2 — Um Maluco na África (1995) e O Pentelho (1996). Assim, foi em 1997, com O Mentiroso, que o ator nascido no Canadá conquistou algumas das suas principais críticas positivas. O saudoso Roger Ebert, um dos maiores críticos norte-americanos, escreveu em seu texto sobre O Mentiroso: “I am gradually developing a suspicion, or perhaps it is a fear, that Jim Carrey is growing on me. Am I becoming a fan?” — Em tradução livre: “Eu estou gradualmente desenvolvendo uma suspeita, ou talvez seja um medo, de que Jim Carrey está crescendo em mim. Eu estou me tornando um fã?”

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Em 1998, chegou a vez dele (Carrey) interpretar Truman Burbank. Para alguns, era uma escolha muito arriscada do diretor Peter Weir. Para outros, como Ebert, o ator era “uma escolha surpreendentemente boa” porque ele tinha o poder de deixar o público confortável apenas com a sua presença.

Na verdade, era uma escolha bem premeditada pelo diretor, visto que ele havia escolhido outro comediante para o papel principal em seu filme mais famoso até então: o excepcional Sociedade dos Poetas Mortos (de 1989), construindo uma das mais bonitas atuações de Robin Williams.

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Enquanto a escolha de Peter Weir acabaria cedendo ao seu ator protagonista a chance de trabalhar com grandes diretores de forte veia dramática nos anos que viriam — como Milos Forman (no excelente O Mundo de Andy), Frank Darabont (em Cine Majestic) e, mais tarde, na obra-prima escrita por Charlie Kaufman, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças —, também ajudou a transformar o seu filme em um marco. O Show de Truman passou a ser citado como um filme revolucionário e a ser constantemente lembrando como uma das melhores ficções científicas já realizadas. A conceituada revista Popular Mechanics, dedicada à ciência e à tecnologia e publicada nos EUA desde 1902, classificou a obra de Weir como uma das 10 mais proféticas da história.

Não é de se espantar. Enquanto O Show de Truman era lançado, surgiam os primeiros reality shows de confinamento pelo mundo. Aqui no Brasil, por exemplo, No Limite (o primeiro do país) estreou em 2000, com o Big Brother em sua versão nacional estreando no ano seguinte. Esse tipo de programa tornou-se uma febre, espalhando-se ao redor do mundo como uma pandemia.

Após 20 anos da sua estreia, TTruman continua sendo uma das melhores e mais significativas personagens de Jim Carrey. Isso se deve, especialmente, à atemporalidade do que é visto. A sátira afiada sobre a espetacularização do ser humano, sobre o capital acima da humanidade, sobre o comércio ser o real consumidor de tudo.

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Essas definições rimam diretamente com o próprio nome do personagem. É como se o roteirista Andrew Niccol estivesse revelando todo o essencial de sua história apenas com o batizado. Truman, no caso, é a aglutinação das palavras “true” e “man”, que significam “homem verdadeiro” e Burbank, o sobrenome, é uma citação direta à cidade Burbank, capital da mídia no mundo, que fica em Los Angeles.

Niccol, ainda, é um especialista em sci-fi, tendo lançado um ano antes o ótimo Gattaca — Experiência Genética (filme que dirigiu além de escrever). Portanto, unindo Niccol, Peter Weir e sua veia para o drama e Jim Carrey em sua melhor forma cômica, O Show de Truman é uma inusitada comédia dramática de ficção científica que, muito jovem, alcançaria o status de clássico.

As mensagens do filme vão desde as mais simples às mais possivelmente ocultas: da crítica a um capitalismo desenfreado que lida com uma única vida e se põe acima desta — vide as marcas que alguns personagens fazem questão de ressaltar — ao fato de que é comum aceitar tudo ao redor sem ao menos checar. Faz parte da rotina? Então é normal e está certo. Esse erro, que qualquer um pode cometer diariamente, tem mais outra face: a libertação dos hábitos. Assim, mostra-se com naturalidade o dia-a-dia de Truman, com seus cumprimentos aos vizinhos pela manhã, sua ida diária ao jornaleiro, seu encontro com uma dupla que, jogando conversa rápida fora, apenas o posiciona em frente a uma grande propaganda colada na parede e seu trabalho.

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Aliás, em meio a tudo isso, estão os espectadores daquele reality show, que acompanham o moço há mais de 30 anos e, há muito tempo, apenas observam a sua rotina. A repetição da vida de Truman apenas reflete a repetição a qual aqueles que o assistem se submetem. E é esse poder de hipnotizar de grudar o espectador frente à TV, que muitos realities shows reais viriam a ter.

Por mais que o roteiro tenha uma progressão previsível — é óbvio desde o início que Truman descobrirá que seu mundo é uma grande farsa —, o caminho percorrido pelo texto de Niccol e a maneira através da qual Weir vai soltando as descobertas é de muita inteligência. Junta-se a isso o ar de humana vilania que Ed Harris cede ao seu Christof — cheio de uma afeição paterna que, até poucos minutos do final, não se sabe se é pelo Truman (que ele viu crescer) ou pelo show em si —, e a crueldade da construção de um psicológico afetado por traumas — especialmente aquele que implanta a morte do pai por afogamento e o faz ter pavor de água.

É assim que O Show de Truman não somente conta uma história, mas consegue causar reflexão até mesmo em quem esteja assistindo despretensiosamente. Talvez essa abrangência e significação da obra se deva à união entre três profissionais tão diferentes, o que possibilita uma abertura muito maior de ideias e termina em um resultado leve e ao mesmo tempo denso; pesado e que consegue fazer rir; faz refletir ao mesmo tempo em que entretém e descansa. Um universo na cabeça de um alfinete.

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Ainda, a implicação com o futuro foi quase imediata. Se antes eram vistos atrizes e atores, esportistas do primeiro escalão ou até mesmo políticos mais comentados (pelos mais variados motivos — e o mais comum todos conhecem) nas TVs, pessoas comuns (eu, talvez você e tantas outras pessoas) poderiam alcançar a fama em um passe mágico: a participação em um reality show.

E isso, como em O Show de Truman, é extremamente rentável. É sabido que a televisão e o cinema há tempos sofrem com uma grande crise criativa. Os postos de criação estão sendo abandonados e os postos técnicos preenchidos. Hoje, a técnica no cinema salta aos olhos muito antes da história e da sua substância. Mas isso é requerido pela indústria. O mundo vive hoje um boom de velocidade. Tudo precisa ser dinâmico. As séries passam de 50 minutos para 20; programas na internet que antes tinham 20 agora precisam ter cinco.

Nesse sentido, a TV tem uma fome quase que insaciável por material. Então, nada mais barato do que, por exemplo, trancafiar gente como a gente dentro de uma casa, levar até lá, de vez em quando, um artista (geralmente em decadência — porque são os menos caros) para fazer um pocket show e, ao mesmo tempo, abrir vídeo e áudio para que todos assistam.

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Dentro disso, há o processo de identificação também: não são atrizes, não são atores que estão ali, são pessoas comuns com as quais é socialmente admissível criar laços mais palpáveis. Guardadas as proporções, é o sentimento da representação negra (que tão bem fez o blockbuster Pantera Negra), da representação feminina (como em Oito Mulheres e Um Segredo), só que é, no final das contas, a representação da personalidade, uma possível resposta espelhada sobre quem se é lá no fundo.

Isso é genial. O problema é que essa mesma televisão é justamente como o Christof de Ed Harris: implacável e estrategicamente financeira. As subcelebridades de um reality show nada mais são do que conteúdo para a sua grade (da emissora), mas um conteúdo barato em horário nobre e com a certeza de milhões de telespectadores vidrados. Nos comerciais desses programas, vê-se somente as marcas que podem pagar melhor. O horário é caro. Muita gente assistindo e assistir a algo antes de dormir é um passo para fixar o que se viu. Devora-se, dessa maneira, vidas e segredos.

Saindo dali, é mais renda: a ida a outros programas da emissora causa furor. E, logo depois, aquelas pessoas, gente como eu e talvez você, são esquecidas. No final, paga-se um milhão para o vencedor (um valor irrisório para o lucro obtido depois de tudo — e antes de mais algum) e voilà, tem-se uma das rendas mais cruelmente legais do show biz. Citando Christof: “Você é real, por isso gostam de assisti-lo.”

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É para lá — para a realidade — que Truman vai, para a saída, para o fim. O Show de Truman não se limita a responder sobre o futuro do seu protagonista. Ele (o filme) está disposto mesmo a perguntar, a construir dúvidas, a causar reflexão. Não é à toa que, após décadas dentro da cidade fictícia de Seahaven (outra aglutinação: “sea” é mar e “haven” é abrigo), o provável verdadeiro abrigo de Truman esteja ali, numa porta aberta no fictício céu, no paraíso (“heaven”).

Ou, de repente, para aquele homem que jamais foi amado de verdade — recém-nascido abandonado de uma gestação indesejada, criado por pais de mentira, casado com alguém que apenas finge ter alguma consideração e confiando em um melhor amigo que nada mais é do que a personagem de um ator —, o fruto da saída é justamente o amor: um amor que ele pensa estar distante, em Fiji, lá na Oceania, mas está bem ali, correndo para, enfim, ceder-lhe muito mais do que um milhão, muito mais do que o dinheiro pode pagar.

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“E, para o caso de não nos vermos mais: Bom dia, boa tarde e boa noite!”