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Crítica | Você Não Estava Aqui reflete um sistema de trabalho de falsa liberdade

Por| 09 de Março de 2020 às 13h17

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Vitrine Filmes
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Para pensar em um filme de Ken Loach escrito por Paul Laverty, geralmente é interessante partir do pessoal e ir em direção ao coletivo – algo que parte dos títulos: Uma Canção para Carla (1996), Meu Nome é Joe (1998), À Procura de Eric (2009), Eu, Daniel Blake (2016)... Todos, se não expõem previamente um centro para a história (Carla, Joe, Eric, Daniel Blake, Jimmy...), partem de um núcleo pequeno (um personagem, uma família) para desmascarar algo muito maior; um núcleo que comanda toda a célula do filme, como se o universo gigante do cinema de Loach e Laverty girasse em torno de um ponto.

O sistema Loach-Laverty é uma espécie de sistema solar, onde seus personagens são centrais como o sol e a história permanece ali, naquele centro, mas com poder de iluminar até mesmo o planeta mais distante. A forma sempre muito clara da condução de Loach aliada ao texto com situações sensíveis e bem exploradas fazem dos filmes atos simbólicos de resistência contra uma mecânica social que parece engolir a todos e transformar muitos, involuntariamente, em cúmplices do caos.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

Inumanos como robôs

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Pode ser interessante perceber como Você Não Estava Aqui acaba por se encaixar em uma perspectiva de falsa liberdade, por meio da qual a vida contemporânea promete liberdade enquanto escraviza. Essa promessa é sempre exposta de maneira muito clara por Laverty, que escreve os diálogos sem medo de torná-los expositivos (porque eles precisam ser assim – eles são, de fato, como estão ali). Balelas como “Você não trabalha para nós. Você trabalha conosco.” remetem a ideia de um falso empreendedorismo, uma tentativa de ser guia da própria vida quando, na verdade, há um pesado e malicioso toque: Você faz do seu jeito... contanto que seja para cumprir as nossas metas.

Nesse sentido, a explorada uberização (termo que pega a Uber como estigma quando o mais próximo seria Jeff Bezos e a Amazon) da vida recebe outro olhar, algo muito mais impessoal – o contraste necessário da hiperpersonalização da vida de Ricky (Kris Hitchen) e sua família com a impessoalidade total das ações externas, como se a tecnologia detivesse o controle sobre as ações dos trabalhadores e tornasse os patrões tão mecânicos e inumanos quanto robôs. Maloney (Ross Brewster), assim, é sempre exposto com alguma distância, com a aparente intenção de não adentrar na intimidade de quem é evidenciado como representante da tal uberização (ou amazonização).

É nessa abordagem que Laverty, explorado por Loach com tanta clareza, deixa claro a todo instante que o problema não é a ciência, é a desconstrução desta: quando o homem passa a deter o poder dela (da ciência) e, com esse poder em mãos, passa a explorá-la com a ideia de domínio. Por esse lado, Você Não Estava Aqui tem, inclusive, uma carga pesada de distopia. O problema é que não se trata de uma ficção científica que tenta prever as relações entre máquina e homem – entre patrões e empregados – em uma década futura; o que Loach expõe é o presente, é o agora, o que pode ser muito mais assustador do que uma raça androide capaz de escravizar a humana.

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Exercício empático contra o sistema

O diretor alimenta a pessoalidade do roteiro com um tratamento sempre muito próximo de Ricky e sua família. As dores dele (de Ricky), de Abbie (Debbie Honeywood) e do filho Seb (Rhys Stone) são sempre reveladas com uma proximidade inquietante. Cada expressão de angústia, de dor, de desespero é exposta em closes que dominam toda a tela. O mesmo acontece com a filha caçula da família, Liza Jae (Katie Proctor), que, se durante a maior parte do filme é tratada com alguma distância por Loach, tem a sua primeira e única cena mais dramática – quando assume a culpa de ter escondido as chaves da van – em uma tomada lateral entrecortada com a frontalidade dos rostos dos pais. O interesse de Loach é, aqui, em como as ações adultas atingem a família e nunca na exploração da dor de uma criança.

Esse universo construído pela direção é fiel a todos os filmes anteriores da dupla. Não existem artifícios gratuitos na busca por provocar emoções ou sentimentalismo. O cinema de Loach é quase um documento de uma realidade contemporânea. A própria Liza Jae é mostrada como uma criança centrada, que só busca formas de encontrar vida (ou recuperar esta) dentro da casa. Essa vida, por sua vez, parece ter ficado em um passado recente, como ela, o irmão e a mãe reclamam algumas vezes o direito de querer que tudo seja como antes. Isso é tão relevante em Você Não Estava Aqui que roupas deixadas pela casa, pratos com restos de comida, sons de vozes ou passos que acabaram de estar no ambiente funcionam como uma metáfora de uma realidade que acabou de passar, que esteve ali há pouco tempo... mas foi transformada em vazio.

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O sistema Loach-Laverty de utilizar o pessoal para contar sobre o mundo pode, ainda, construir uma ponte direta para a experiência do espectador. Se Eu, Daniel Blake revelava-se como um exercício empático desse sistema para com o protagonista, Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You no original – Desculpe, nós sentimos a sua falta em tradução livre) acaba por ter essa mesma energia, mas depositada no outro: pela família em Ricky, por Ricky em sua família – na sua entrega em se manter dentro do esquema –, do público para com a situação e, no final das contas, do filme para com o público – que, em nossa realidade, já deve ser formado por uma porcentagem considerável de quem está a mercê de uma relação de trabalho semelhante.