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Crítica | Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw dá novo vigor à franquia

Por| 02 de Agosto de 2019 às 21h10

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A arte e, aqui, especificamente o cinema, não é o lugar onde procuramos fidelidade à realidade. Preocupar-se com as possibilidades do real é um papel da ciência. A arte lida com as possibilidades da imaginação e a realidade só interfere na trama do filme quando há abertura para que façamos essa correlação. Ao longo dos anos, a franquia Velozes & Furiosos criou seu próprio universo e deixou bem claro que tem suas próprias leis da física, o que é indispensável para compreender que a obra não se leva a sério: estamos diante de um universo fechado em si e, se algo faz sentido, é devido às premissas que esse mesmo universo nos fornece.

Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw não é inovador e repete as fórmulas de muitos outros filmes de ação. Dizer isso, no entanto, não é uma crítica negativa, nem positiva, é apenas uma constatação. E está tudo bem: não é obrigatório que cada novo filme precise reinventar a roda. Se nem mesmo a ciência se esgota, por que haveria a arte de se esgotar? Só se inventa a roda uma vez, mas as possibilidades do que podemos fazer com ela são praticamente infinitas. Se Velozes & Furiosos (de Rob Cohen) trouxe algo de novo em 2001, tudo o que se seguiu foram variações da fórmula e não há nada de ruim nisso. Restringindo à questão da originalidade: Por que é aceitável que Monet faça tantas variações de um mesmo monte de feno, mas é inaceitável que um roteirista não seja completamente original e inovador a cada história que escreve?

Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw é mais do mesmo sim e faz isso com maestria: David Leitch, diretor do spin-off, dá uma aula de cinema mainstream.

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Atenção! A crítica abaixo pode conter spoilers.

Lição 1 – Como apresentar personagens

Embora o título do filme traga os nomes Hobbs e Shaw e muito da bilheteria se deva às presenças de Dwayne Johnson e Jason Statham, é uma nova personagem, Hattie (Vanessa Kirby), que inicia o filme salvando o mundo. Tendo De Volta ao Jogo (o primeiro da trilogia John Wick), Atômica e Deadpool 2 no currículo, David Leitch sabe que não é necessário muito para o espectador entender o quão badass é um personagem. Logo na primeira sequência, Hattie mostra que é profissional, competente e páreo para o supervilão, além de não fazer drama algum ao injetar em si mesma um vírus mortal e altamente contagioso: o suficiente para saber que não se trata de uma princesa em perigo. A aparição dos demais personagens em momento algum serve como sobreposição: é um trabalho de equipe em que cada um tem seu valor.

Apresentado o problema a ser resolvido, David Leitch abre uma sequência espetacular de apresentação dos personagens Hobbs e Shaw, utilizando sobretudo a fotografia e a direção de arte. A tela dividida nos permite ver detalhes indicativos de que os personagens são diferentes o suficiente para entrar em conflito e, ao mesmo tempo, tão iguais que são capazes de formar um grande time.

Hobbs é, ao mesmo tempo, truculento e carismático, a mistura estranha de montanha de músculos e vulnerabilidade emocional dos personagens de Dwayne Johnson, dualidade que é mostrada a cada frame do seu personagem. A fotografia amarelada traz aconchego e calor à rotina matutina de Hobbs, que acorda e faz flexões ao lado do seu bulldog francês, bebe ovos crus e come pó de café enquanto lê Nietzsche. Veste uma roupa despojada, caminha no sol e vai à academia.

Shaw, por outro lado, é mais cérebro do que músculos. Pouco simpático e um pouco arrogante. Ao contrário do lado esquerdo da tela, a rotina de Shaw é com uma fotografia fria, casando com sua personalidade, e o tom azulado ainda revela o quão refinado é o personagem, que veste um pijama caro, prepara uma omelete gourmet, veste terno, tem um MacLaren 720S para uso cotidiano, caminha na chuva e lê o jornal do dia.

O mesmo tratamento será dado, posteriormente, ao apartamento de Hattie, que, sendo uma personagem bastante ligada ao virtual, mora em um ambiente muito mais tecnológico, cujos móveis com um design moderno escondem uma certa bagunça, como os post-its que se sobrepõem sobre a tela do computador: ela não nega o sangue Shaw, mas está longe de ser fria e calculista como o irmão. Ela é a única possibilidade de conversão de personalidades tão distintas quanto Hobbs e Shaw, que, na verdade, nem são tão diferentes assim: ambos acordam às 6h, comem ovos no café da manhã e lidam com os inimigos mais ou menos da mesma forma.

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Lição 2 – Adicionando comédia

O Universo Marvel redescobriu, através de Os Vingadores (de Joss Whedon, 2012) e Guardiões da Galáxia (de James Gunn, 2014), que ação e comédia podem andar de mãos dadas e, desde então, isso tem se tornado um formato a ser explorado. O quanto deve haver de comédia em uma trama que se propõe séria, no entanto, ainda é assunto delicado no universo dos super-heróis. Nos Velozes & Furiosos, ainda que houvesse alívios cômicos ou que a própria ação fosse cômica por ser absurda, é somente no spin-off que a franquia adquire um caráter assumido de comédia, o que se deve ao fato de que não há alívio cômico: seus personagens-título são em si cômicos.

Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw não abandona a competitividade masculina dos rachas (pano para muitas sessões com psicanalistas), mas a reenquadra em infindáveis disputas de ego entre os personagens principais (o que inclui o vilão). A fórmula poderia se desgastar ao longo das mais de duas horas de filme, mas, ao contrário, funciona até o fim, não necessariamente porque as piadas são muito boas, mas porque os brutamontes são sutilmente infantilizados: são como dois meninos brigando no pátio da escola. E tal como crianças discutindo, a dupla soa completamente natural até nos diálogos mais absurdos.

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Há também o que se tornou o principal tempero do filme: a comédia do absurdo. Como pontuado acima, as leis da física não se aplicam, então sempre há espaço para que aconteça absolutamente qualquer coisa. É tudo claramente impossível, e o trailer nos mostra isso, ou seja, divulgação e produção se mantêm honestas com o público e é bastante difícil que alguém seja pego de surpresa. Com isso em mente, vai-se ao completo oposto da racionalização e apreciação clássica de um filme: o espectador pode se flagrar torcendo e comemorando pelas ações dos personagens como se estivesse na arquibancada de um estádio de futebol.

Nesse sentido, Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw desperta uma das experiências mais lindas do cinema: o prazer do coletivo. Sentir a atmosfera mudar ao seu redor durante uma sessão é uma experiência que somente a sala de cinema nos proporciona, é como ser transportado para o universo de Totó em Cinema Paradiso (de Giuseppe Tornatore, 1988). Coincidentemente, um dos filmes cujas sessões me marcaram pela reação dos espectadores presentes, pela interatividade com o filme, foi Deadpool 2 (2018), que é dirigido por David Leitch.

Lição 3 – Mostrando a ação

Tendo atuado como dublê, David Leitch tem grande familiaridade com o funcionamento de cenas de ação. Sua direção, nesse quesito, é impecável: os cortes são rápidos, mas são precisos, e, embora possam esconder falhas, não transmitem a sensação de que estão ali para isso. É possível vislumbrar cada golpe, quem desferiu e quem recebeu. A câmera lenta, que geralmente é utilizada como recurso estético para demonstrar a precisão de um ataque, é utilizada também para revelar a comicidade do momento: é inteligente a ideia de levar um golpe para que o parceiro tenha a chance de atingir Brixton (Idris Elba), mas a câmera lenta e as expressões dos três atores sob a chuva elevam a sequência a um nível de dramaticidade tão grande que a ação se converte em comédia de uma forma muito positiva.

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Talvez haja pouco foco nos carros para os fãs mais raiz da franquia, mas não significa que não tenhamos sequências incríveis de perseguição. Nesse ponto, o destaque não vai em momento algum para os principais mocinhos: o que há de mais memorável em termos de veículos é a motocicleta (Transformer?) de Brixton e a já icônica corrente de carros da família Hobbs.

Lição 4 – Inserindo valores

Assim como pitbulls, que podem ser máquinas destruidoras, mas na verdade são extremamente dóceis, Dwayne Johnson é tão carismático que se tornou uma figura amada por todas as faixas etárias, tendo feito filmes família e infantis inclusive. A franquia original Velozes & Furiosos não é, definitivamente, um filme para crianças, mas de algum modo isso vazou e, hoje, temos uma série considerável de materiais escolares e outros produtos para crianças com estampa da franquia. Adicione a isso a treta de Dwayne Johnson com Vin Diesel e é possível entender que o spin-off é uma saga com um espírito completamente diferente da original.

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Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw tem classificação indicativa de 14 anos e ainda contém muita violência para uma criança (o que é discutido com frequência quando a filha de Hobbs está em cena), mas sabemos que elas acabarão vendo em casa e, sendo essa a realidade, há muitos ensinamentos saudáveis inseridos na trama. O conceito de família é muito menos gângster e muito mais laço afetivo. Há uma compreensão geral de que é muito melhor estar do lado dos mocinhos, que são bons, definitivamente bons. A discussão sobre tecnologia é vaga e é piegas a afirmação de que ter um coração vale muito mais, mas funciona.

Respeite a sua família, ame as pessoas que são importantes para você e faça o bem. Se alguma criança vai assistir o que não é aconselhado, que pelo menos algo de bom seja extraído disso.

Lição 5 – Elemento surpresa

Grande spoiler a seguir:

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A química entre Hobbs e Shaw realmente funcionou e, por mais engraçados que sejam, eles não são a verdadeira comédia do filme. O que já era bom fica hilário com as aparições de Kevin Hart e Ryan Reynolds. Nesse sentido, é preciso ressaltar a habilidade não só dos atores, mas também dos roteiristas Chris Morgan e Drew Pearce, uma vez que demanda uma real qualidade de escrita fazer inserções como essas sem gerar esgotamento e ainda deixar abertura para sequências com ambos os personagens.

Ryan Reynolds ganha um destaque maior e, inclusive, protagoniza uma cena pós-crédito que referencia o aclamado Old Boy (de Chan-wook Park, 2003) e culmina na discussão absurda sobre o quão fácil é apunhalar alguém com um tijolo.

Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw não pretende surpreender o espectador com algo que ele nunca viu, mas sim entreter com o que já é lugar-comum e faz isso muito bem. Toda a equipe técnica parece igualmente comprometida e o resultado disso é um filme bom o suficiente para conseguir ser divertido sem distrair o espectador com falhas.

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Ao final, a desconstrução de Brixton, que vai de Superman negro a mero peão de manobra, deixa a sensação de que essa nova franquia pode tomar proporções épicas. E há muito espaço para isso.