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Crítica | Um Dia de Chuva em Nova York mostra que nunca será tarde para sonhar

Por| 26 de Novembro de 2019 às 12h52

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Separar o artista de sua obra não é uma tarefa fácil, especialmente para quem tende a sentir as dores daqueles que tem menos ferramentas para lutar de igual para igual. Por outro lado, essa tarefa se torna ainda mais complicada quando o artista está tão misturado à sua obra que tudo parece um grande retrato da sua própria vida ou, em grande parte, do seu modo de pensar.

Assim sendo, Woody Allen – roteirista e diretor de Um Dia de Chuva em Nova York –, por mais que não tenha nada comprovado na justiça contra si, ganhou um status de persona non grata para muita gente, a ponto de criarem campanhas de “cancelamento” contra seu novo filme. E essas campanhas surtiram efeito: pela primeira vez desde 1982, Allen interrompeu o seu processo de lançamento anual, passando 2018 em branco. Isso porque a Amazon, pressionada pelas ditas campanhas, engavetou o filme... até o insustentável ponto em que o diretor conseguiu os direitos de lançá-lo fora do seu país.

Vale a pena, no meio de tudo isso, pesquisar sobre os relacionamentos de Allen com Mia Farrow e, posteriormente, com Soon-Yi Previn (filha adotiva de Farrow). Nessas questões, documentos oficiais, laudos da perícia da época e depoimentos (inclusive recentes) de quem já conviveu ou trabalhou com Allen para refletir sobre possíveis conclusões são sempre boas fontes e relativamente bem fáceis de encontrar.

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Dessa forma, pretendo separar o artista da obra, porque uma arte tem vida própria e não merece (ou não deve) ser contaminada pelo caráter do seu criador, seja ele bom ou mau. A menos que o artista esteja bem embaralhado ao trabalho...

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Esculturas de luz no mundo de Allen

Um Dia de Chuva em Nova York é, enfim, a concretização de uma fase que vem crescendo e cada vez mais sendo abraçada por Allen desde Meia-Noite em Paris (2011). Não que seus filmes estejam ficando grandiosos em uma medida que nunca foram, mas há uma preocupação crescente com a desenvoltura de um destaque estético que, antes, era suplantado pelo roteiro sempre inteligente e pela direção de uma eficiência milimétrica.

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Nesse sentido, a parceria com o diretor de fotografia Vittorio Storaro, que surgiu a partir de Café Society (2016), parece ter dado um frescor à aparência dos filmes do mestre nova-iorquino. Inclusive, foi Storaro que convenceu Allen a migrar da película para o digital e, com isso, carregou uma sofisticação que, aliada ao trabalho do diretor, faz com que os filmes ganhem elementos praticamente ausentes em trabalhos anteriores.

Esse frescor cede a Um Dia de Chuva em Nova York cenas de um apuro técnico absurdo (no melhor sentido da palavra). Alguns closes em Gatsby (Timothée Chalamet) e especialmente em Ashleigh (Elle Fanning) transformam o casal em esculturas angelicais. A luz difusa de Storaro ilumina o rosto de Fanning como se buscasse deixar os contornos de sua pele ausentes, esculpindo sua personalidade em formação – alguém se descobrindo, conhecendo o mundo e se reconhecendo nele. Enquanto isso, se ela (e ele também) é essa escultura distorcida da forma mais bonita possível pela luz, os personagens mais velhos, como o diretor existencialista Roland Pollard (Liev Schreiber) e o roteirista Ted Davidoff (Jude Law), são tratados com definições mais exatas pela luz, transformando-os em seres já moldados e bem formados, por mais que desajustados. É uma fundamentação estética das personalidades que tem influência na percepção – por mais que intuitiva, subjetiva e até inconsciente – do público.

A genialidade de Allen enquanto artista, por sinal, está muito em entender o seu público e o seu próprio mundo e, dessa maneira, não aterrissar onde sua voz não encontra um lugar de fato. As problemáticas relações de gente bem longe da pobreza; o mundo ao redor de uma nobreza que às vezes parece ruir; a então nobreza financeira que desconstrói sua própria história – como na revelação da mãe de Gatsby (Cherry Jones)... tudo é, no final das contas, o mundo de Allen, que não parece disposto a sair de sua zona de conforto enquanto tiver ideias, por mais que a falta de liga temática com o mundo atual comece a ficar muito latente.

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Mágoa ou culpa, mas nunca tarde para sonhar 

Em contrapartida, muito do que Allen escreve em Um Dia de Chuva em Nova York parece revelar uma preocupação em se defender. Seja ao tratar Ashleigh como um ser angelical que, em certo momento, precisa dizer que não é menor de idade; seja ao expor, na mesma cena, a esposa de Davidoff (Rebecca Hall) com uma certa ingratidão de adúltera – fazendo ele (Davidoff) ser muito mais carismático e passível de compreensão (por Ashleigh inclusive); muito pode remeter ao Allen extrafilme e isso, de algum jeito, tem força para macular uma obra que, à primeira vista, pode ser inocente e, de mais perto, pode revelar a mágoa do seu criador com uma mentira ou o sentimento de culpa que, geralmente, transforma tudo em uma investida quase epifânica à procura de paz.

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A verdade é que Woody Allen, prestes a completar 84 anos de idade e já com praticamente meia centena de filmes na carreira, tem um público cativo, conquistado por uma regularidade que se torna difícil fazer uma lista curta com seus melhores filmes sem que ela seja contestada. Em Um Dia de Chuva em Nova York, seu público dificilmente não sentirá a nostalgia da narração em off, os amores que se esvaem e se formam nas ruas de sua cidade... É como se essas ruas tivessem vida, como se o relógio ao final – que fica em cena por muito mais tempo do que aconteceria caso fosse apenas um simples objeto – dissesse que o tempo passa sim, existe uma consciência sobre isso, mas, por mais que esse tempo esteja explícito, nunca será tarde para sonhar.