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Crítica | Toy Story 4: "Os seus problemas são meus também"

Por| 21 de Junho de 2019 às 18h38

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Disney/Pixar
Disney/Pixar
“Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.” – Fernando Pessoa

Há algumas marcas em animações que são difíceis de esquecer e, ao mesmo tempo, podem ser duras de lembrar. Geralmente, esses carimbos emocionais são associados à morte: a mãe de Bambi (em Bambi, de 1942), Mufasa (em O Rei Leão, de 1994), Tadashi (em Operação Big Hero, de 2014) e, inclusive, naquela que é considerada por muitos a animação mais triste da história, O Túmulo dos Vagalumes (de 1988). A força que tem a ideia de não mais existir ou de ver alguém que se ama partindo rumo ao desconhecido para sempre é o que sedimenta a memória nesses casos.

Toy Story, desde 1995 (quando foi lançado o primeiro), nunca trouxe essa relação de vida e morte para um mundo concreto. Cervos e leões (falantes ou não), pessoas adultas ou crianças não correm perigo direto aqui. A criação de um universo onde é possível se importar com a vida de brinquedos, onde a identificação do espectador nasce das atitudes, ações e pensamentos de seres normalmente inanimados, é o que de mais genuíno o cinema pode oferecer. É a representação do impossível. É a visualização real de uma situação de sonho.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!

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Um grito de socorro

Toy Story 4 parece compreender muito além de tudo o que já era explorado nos anteriores. Há uma maturidade temática e emocional que cria uma relação de proximidade justamente com a morte e, muito mais profundo: com a morte em vida. Se no anterior as cenas finais concentram o que de mais dolorido poderia surgir da relação entre os brinquedos e Andy – o fim da infância e a libertação simbólica dela para a continuidade de um ciclo –, nesse existe uma competente dispersão de situações e valores durante todo o filme.

Se a persistência de Woody por jamais deixar um brinquedo para trás é levada ao extremo, ela (a persistência) encontra uma função carregada de significados. Garfinho, nesse sentido, não é somente um talher descartável remexido e reelaborado por uma criança. Ele é, em um primeiro olhar, a materialização de uma criação; é a primeira ideia de Bonnie sobre o que é ter algo estritamente seu, saído de si; é a representação da primeira arte esboçada por uma artista; é, também, a materialização de uma resistência e da solidão – visto o grau de distanciamento em que a pequena é relegada em seu primeiro dia na escola.

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Garfinho torna-se, dessa forma, o personagem mais complexo dos quatro filmes (e isso é assustador dada a existência dos demais), fato que é ajudado pelo tempo dedicado à sua história. E é interessante como a direção do estreante em longas-metragens Josh Cooley consegue dar leveza e positivamente mascarar toda a dor do roteiro de Andrew Stanton (que participou de quase tudo o que foi lançado de Toy Story) e Stephany Folsom (em sua estreia). Garfinho é a personificação do sentimento de impertencimento. Ele é, de fato, um brinquedo a partir do momento em que Bonnie o cria e o vê assim, mas é algo que foge das razões funcionais para as quais ele nasceu.

Não é a questão clichê da força de vontade ou de acreditar no que dizem, é a forma com a qual o mundo enxerga. Quando Garfinho diz que é lixo, que é descartável, que nasceu assim e que, por isso, precisa ser essa noção solidificada e embrutecida de si, ele está dando um grito de socorro. Woody enxerga pelos olhos de Bonnie: é a arte através dos olhos da artista.

Mas vai muito além. Ao passo que Woody e companhia em momento algum permitem que Garfinho pense que é um lixo – com Buzz insistindo para o ajudar nessa luta –, tudo é tratado com uma leveza fascinante por Cooley. Nada respinga no público (especialmente nas crianças) de forma direta. Há um grau claramente proposital na solidificação das várias camadas que faz de Toy Story 4 tanto uma comédia e uma aventura quanto um drama existencial.

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O herói necessário, o heroísmo urgente

De qualquer maneira, existe um peso nos risos que dificilmente sai impune. Se ver o serzinho artesanal se jogando no lixo durante uma noite inteira, sempre sendo retirado por Woody, tem um poder cômico natural – e triste quando se procura uma visão menos evidente –, sua identificação posterior com a escuridão de Gabby Gabby acrescenta mais subtextos à sua condição depressiva. Há, nesses dois personagens (Garfinho e Gabby Gabby), uma aliança perigosa e autodestrutiva: é a depressão e a ansiedade dando as mãos em um antiquário escuro e esquecido com ares de terror – e os bonecos de ventríloquo e uma referência sonora a O Iluminado (de Stanley Kubrick, 1980) só reforçam esse aspecto. "Ninguém se interessa pelos brinquedos daqui.” (ou quase isso), diz a senhora dona do local... o mesmo que, escuro e esquecido, chama-se Segunda Chance.

E Gabby Gabby, pincelada inicialmente como vilã, faz jus ao dito impertencimento. Ela não se vê como algo. Ela apenas sonha acordada, em suas tardes de chá solitárias, amando platonicamente uma vida que nunca teve. Nesse ponto, aquela que talvez seja a metáfora mais bonita é exposta: Woody, que sabe muito bem como é amar e ser amado – sempre relembrando Andy –, entende que sua voz interior pode ser cedida à nova amiga. Em um gesto de profundo desapego, ele se desfaz daquilo que um dia alegrou sua primeira criança e fez parte da história de Bonnie. “Tem uma cobra na minha bota!” passa a ser passado para dar voz a uma esperança. Woody, que, extra-filme, representa a infância de mais de uma geração, não é o herói de uma aventura; ele passa a ser o herói necessário, aquele que o mundo precisa; Woody personifica o heroísmo urgente para um mundo sem empatia.

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Mas Toy Story 4 não deixa nada ser muito fácil. Enquanto recheia tudo com um humor afiado – Coelhinho, Patinho, Duke Caboom (os três, ainda assim, cheios de alegorias), o GPS e o trailer da família de Bonnie que o digam –, o roteiro guia o arco-dramático de Gabby Gabby em direção ao desfecho mais emocionalmente satisfatório e idealmente racional. O romantismo bitolado dos opostos que se atraem dá lugar à ligação dos que se unem porque precisam um do outro. Gabby Gabby, em sua segunda chance, e sua nova dona, ambas perdidas (a primeira dentro de si e a segunda dos pais), encontram-se e, pela primeira vez, a boneca transformada em vilã pelo esquecimento, aquela que afastava a todos, terá um nome escrito na sola do seu sapato.

É tudo tão emocionalmente intenso – com Woody, inclusive, revelando indiretamente que passou pela síndrome do ninho vazio, com o distanciamento de Andy provocando a sensação de solidão sentida especialmente por pais quando os filhos saem de casa –, que, no final das contas, a noção da grandeza do filme é capaz de ser perdida. Devido à dispersão do seu peso em cada ato, Toy Story 4 pode não ser visto, em uma primeira leitura, como o mais doloroso. O ato final do terceiro (de 2010), nesse sentido, é uma obra-prima.

"Ao infinito e além!"

A questão é que, aqui, há uma completa e complexa rede de metáforas e simbolismos (diretos e indiretos) – a liderança de Dolly, a liberdade de Betty e a estrela de xerife cedida por Woody para Jessie são fundamentais para a identificação das meninas e para a maturidade emocional e social dos meninos – que permeiam e solidificam todo o filme. É uma bomba emocional que parece ter consciência de preparar o espectador para o fim. Espectador que, se não tivesse a dor dispersada durante mais de uma hora e meia, talvez não estivesse preparado para uma separação até então inimaginável.

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E é então que trago para o meu mundo particular e tudo retorna ao início, à música de Randy Newman na versão de Zé da Viola:

“Amigo, estou aqui.Amigo, estou aqui.Se a fase é ruim– e são tantos problemas que não tem fim –,não se esqueça do que ouviu de mim:Amigo, estou aqui. Amigo, estou aqui. Amigo, estou aqui.Amigo, estou aqui.Os seus problemas são meus também.E isso eu faço por você e mais ninguém.O que eu quero é ver o seu bem.Amigo, estou aqui.Amigo, estou aqui.”

É, amigo, estou aqui. Não importa a distância, não importam os caminhos, não importam os meios. Eu agradeço por sempre me entender e me deixar guiar por minha voz interior. O sábio Buzz Lightyear não poderia estar mais certo ao olhar nos olhos de Woody e lhe mostrar o amanhã. E é fundamental perceber o quanto a voz interior dele sempre foi profética: “Ao infinito e além!”

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*Crítica dedicada aos amigos João Fogliatto e Sergio Oliveira