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Crítica | Os Aeronautas é uma biografia muito pouco biográfica

Por| 02 de Março de 2020 às 10h48

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Amazon Studios
Amazon Studios

Não somos inocentes de pensar que um filme biográfico é completamente fiel à realidade. Sempre temos um mínimo de noção de que há momentos em que o roteirista fantasiou e criou um personagem baseado em uma figura real, o que fica completamente explícito quando vemos, por exemplo, momentos em que o personagem estava sozinho, acontecimentos íntimos que não foram registrados, os quais só temos acesso através da ficção.

A pergunta que levanto, portanto, é: quanto de ficção é necessário para que um filme deixe de ser biográfico? Quanto podemos mexer na história real para continuar dizendo que ela é uma biografia de certa pessoa? Biografia, por definição, é uma narração de fatos da vida de uma figura que existiu na realidade. Com isso em mente, Os Aeronautas (disponível no Amazon Prime Video) é quase tão fantástico quanto sua estética a la Oz: Mágico e Poderoso (Sam Raimi, 2013) indica.

Atenção! A partir daqui a crítica pode conter spoilers.

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Biografia de quem?

James Glaisher é um personagem histórico real: foi pesquisador do departamento de meteorologia do Observatório Real de Greenwich, tendo fundado a Sociedade Real de Meteorologia e a Sociedade de Aeronáutica da Grã-Bretanha. Uma figura histórica importante, com conquistas e importância científica. De fato, há algo de muito emocionante em pessoas que arriscaram suas vidas em nome do conhecimento.

É possível pensar em um filme que mostre essa fragilidade do ser humano diante dos seus limites: um balão que leva pessoas o mais próximo que qualquer ser humano havia chegado das estrelas é um mote realmente bonito, mas nas mãos certas. Tom Harper dirige um roteiro de Jack Thorne e é tentador dizer que a parceria não poderia ser mais desastrosa (mas sabemos que sempre é possível ser pior).

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Logo nos primeiros minutos de filme, a personagem de Felicity Jones, Amelia Wren, causa desconforto: é difícil imaginar que uma mulher pudesse usar um vestido tão curto no período vitoriano em Londres. Essa preocupação com o figurino voltou à minha mente ao descobrir que ela era viúva e que fazia parte de uma família abastada. Talvez isso pudesse acontecer, mas soa muito anacrônico (sobretudo porque é a única mulher com esse figurino) ver a personagem sentada no meio fio com as canelas à mostra, o que soaria pornográfico na época. Detalhe: ela é a protagonista.

Amelia? Que Amelia?

Os Aeronautas não é sobre James Glaisher. O filme se desenvolve como se quisesse nos mostrar Amelia Wren como uma mulher à frente de seu tempo: sem paciência para as obrigações que a sociedade impunha a uma mulher da sua época, preocupada com ciência como não poderia ser, invadindo espaços designados exclusivamente a homens, fazendo história contra todas as amarras que lhe eram impostas...

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Harper e Thorne tentam a todo custo mostrar a força de Amelia Wren, que inclusive salva a pele Glaisher. Os Aeronautas é sobre como uma mulher fez ciência e a história da personagem adiciona um drama realmente grande ao clímax do filme: para salvar alguém, às vezes um sacrifício é necessário (mas mesmo isso é mal trabalhado por Harper, que não dá credibilidade alguma ao momento de quase suicídio de Wren: é óbvio que o par romântico do cientista não pode morrer).

Ao final, quando ele retorna ao Observatório Real de Greenwich e é ouvido pelos colegas que agora o respeitam, Glaisher sequer cita Amelia em seu discurso, como se tivesse feito tudo sozinho e não devesse a ela a sua vida. Mesmo sabendo que talvez não permitissem, é possível esperar ver Amelia ser aceita pelo meio científico, dadas as suas proezas. Uma rápida pesquisa, no entanto, mostrará que Glaisher foi casado com Cecilia Louisa Belville. Não com Amelia, porque ela nunca existiu.

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Sim, Os Aeronautas é um filme biográfico, que tem como protagonista e heroína uma pessoa que sequer existiu. Amelia é uma amálgama de duas figuras reais: Sophie Blanchard, a primeira mulher a trabalhar profissionalmente como balonista (sendo a principal referência de Felicity Jones), e Margaret Graham, a primeira britânica a fazer um voo solo e cujo balão azul e vermelho serviu de inspiração para a direção de arte de Os Aeronautas. O nome "Amelia", inclusive, pode ter sido em referência à Amelia Earhart, primeira mulher a voar sozinha sobre o Oceano Atlântico.

História das mulheres

Estamos em tempos de mudança: representatividade importa e será cobrada. No que diz respeito ao feminismo, queremos ver mulheres protagonistas, histórias de mulheres que mudaram o mundo... Mas por que fazer isso a partir de uma história real de um homem pioneiro e colocar ao seu lado uma pessoa que nunca existiu? Por que não usar esse orçamento para fazer a história de Margaret Graham, por exemplo?

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Tendo em mente que Amelia é uma ficção, o roteiro perde ainda mais valor. Amelia passa a ser uma peça inserida para fazer par romântico com Glaisher, como se um filme não pudesse ser interessante sem ter um romance. Talvez a inserção desse elemento seja um atestado do próprio roteirista de que ele não era capaz de criar uma história realmente biográfica, focada na ciência e ainda assim entreter o público. Talvez seja apenas uma exigência de produção, mas ainda assim o filme acaba sendo assinado por Tom Harper e Jack Thorne, maculando o currículo de ambos.

Com Felicity Jones e Eddie Redmayne formando um casal (sim, nada é muito explícito, mas a tensão romântica é clara), Os Aeronautas mais parece uma lombra sem lógica do Stephen Hawking de A Teoria de Tudo (2014).