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Crítica | O Primeiro Homem é sobre o que fica pelo caminho

Por| 19 de Outubro de 2018 às 13h59

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Universal Pictures
Universal Pictures

Para guardar: O Efeito Kuleshov é o resultado de uma experiência realiza pelo diretor russo Lev Kuleshov na década de 1920. Para chegar ao Efeito, Kuleshov apresenta o rosto de um ator e, logo após, a imagem de um prato de sopa. Na sequência, o mesmo ator com a mesma expressão vazia antes da imagem de uma menina dentro de um caixão. Por fim, o russo mostra mais uma vez o rosto do ator sem qualquer mudança de expressão e, depois, a imagem de uma bela mulher deitada em um sofá (praticamente uma Rose, de Titanic). A mente de quem assiste é o que constrói o significado, que insere o sentimento naquele homem. Fome, tristeza, desejo/admiração? Tudo depende das imagens, dos seus significados e da ressignificação que se dá a cada corte.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

A Desconstrução

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O Primeiro Homem é, de fato, um filme que surpreendentemente ainda não havia sido feito, tal o grau de importância da realização para os americanos e (por que não?) para a humanidade. A chegada do homem à lua tornou-se um motivo de grande orgulho particularmente para o EUA, impulsionado pela mídia e em meio a críticas sobre as cifras gastas em plena corrida espacial contra a União Soviética.

Tudo isso é exposto pelo filme, que tem o roteiro escrito por Josh Singer (de The Post – A Guerra Secreta) e baseado no livro de James R. Hansen, que contorna biograficamente a vida pessoal e profissional de Neil Armstrong desde a sua entrada no programa espacial até as suas primeiras palavras como homem histórico.

Enquanto Singer emenda cada situação a partir de um ponto muito íntimo, a direção de Damien Chazelle não tem qualquer pudor em revelar a sua intenção de colocar o público na pele de Armstrong. Ele o faz já na primeira sequência ao priorizar o homem ao invés do universo. Sua escolha por planos fechados, praticamente dentro do uniforme do jovem Armstrong, é claustrofóbica, tensa e acaba por ser de uma agonia quase extrema através dos cortes rápidos e propositalmente irregulares de Tom Cross (editor recorrente da curta e excepcional filmografia de Chazelle). O foco de O Primeiro Homem passa a ser, exatamente, aquele que é o homem e não a chegada dele ao nosso satélite natural.

Essa desconstrução causada no primeiro momento e à primeira vista por roteiro, direção e edição, logo ganha contornos ainda mais evidentes, quando as cenas familiares são estabelecidas a partir de uma estética aparentemente caseira. A câmera na mão, a textura e a palidez das imagens lembram as filmagens que eram produzidas pelas clássicas câmeras Super-8, que surgiram justamente na década de 1960 como um novo formato de filme amador. E é essa palidez que, a partir de então, toma conta do filme, especialmente a partir da morte da pequena filha de Armstrong.

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O Primeiro Homem não é um filme sobre um herói. Longe de ser ufanista, trata-se de um filme sobre a morte ou, melhor dizendo, sobre o quanto vale a vida. Chazelle, que, com 33 anos, já havia presenteado o cinema com três longas-metragens, incluindo Whiplash: Em Busca da Perfeição e La La Land: Cantando Estação, sai totalmente da sua zona de conforto e se arrisca em um ponto oposto. Da intensidade, da sensibilidade, do lirismo e do romantismo mais íntimos de filmes explicitamente ligados à música, ele passa a uma glória da humanidade. Mesmo assim, à medida em que abre o seu leque, sua direção jamais mira em um alvo fácil. Aqui, as perdas de pessoas queridas têm muito mais valor do que a chegada à lua. Tudo o que Armstrong sente tem mais importância do que o sentimento do mundo quanto ao famoso primeiro passo. A bandeira fincada no solo lunar é vista, inclusive, somente de bem longe, apequenando o país e engrandecendo o astronauta – que é visto quase sempre de muito perto em closes intensos.

A dimensão apessoal e o Efeito Kuleshov

Tecnicamente irrepreensível, vale ressaltar a total ausência de som quando no espaço, o que retrata a realidade de uma forma que engrandece a missão. A mixagem de som, por sinal, dá a impressão das dimensões exatas de cada item – do poder das turbinas de um foguete aos cliques dentro dos módulos. São fantásticos, por exemplo, os diversos closes em parafusos, botões, manivelas, porque, ao mesmo tempo em que essas imagens são cercadas por um áudio que busca a realidade, cria um sentimento de aprisionamento assustador. Em se tratando de áudio, a música de Justin Hurwitz (que compôs para todos os filmes de Chazelle) é um destaque à parte, especialmente quando referencia o clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço (lançado por Stanley Kubrick um ano antes da chegada do homem à lua, em 1968) com uma valsa durante um dos poucos vislumbres externos da Terra.

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A direção de fotografia de Linus Sandgren (de La La Land: Cantando Estações), aliás, é precisa para a atmosfera de medo: se as imagens caseiras são iluminadas de uma forma serena e difusa, que permite aos personagens transitarem entre a claridade e as sombras a depender do que estão sentindo, quando os astronautas estão em suas funções, os reflexos nas viseiras e as luzes duras, diretas, dão a dimensão do grau de não-intimidade, apessoal, do trabalho.

O Efeito Kuleshov então: Ryan Gosling consegue interpretar Neil Armstrong com uma expressividade completamente vaga. Chazelle, obviamente, tem papel fundamental nessa composição, mas Gosling leva tão a sério a sua personagem que permite que a construção dela seja feita por cada espectador. As emoções que o diretor busca, sejam elas físicas (valeria um alerta aos portadores de labirintite) ou psicológicas, são aquelas necessárias para que o público construa Armstrong por dentro. Exigindo alguma bagagem emocional do público, o que o afasta imensamente dos seus filmes anteriores, Chazelle, de 33 anos de idade, reflete um pensamento de 1676 (de Roger de Piles): “A pintura deve desafiar o espectador [...] e o espectador, surpreendido deve ir ao encontro dela como se entrasse em uma conversa.”

Quando lhe é permitida a chance

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A intensidade com a qual a arte toca em quem a presencia é proporcional ao quanto se está disposto a compreendê-la. Se Gosling é a ilustração perfeita do todo nesse sentido, Claire Foy (que interpreta Janet, a esposa de Neil) é a intensidade que complementa toda a falta de clareza emocional. Não há ordem no caos, tudo é “um monte de protocolos e procedimentos para fingir que há alguma ordem”, nas palavras da própria personagem.

É essa dualidade que remata o filme em uma das cenas mais bonitas de todos os 141 minutos de duração. Coerente, O Primeiro Homem não se encerra no triunfo, naquele que é “um pequeno passo para o homem e um salto gigantesco para a humanidade”. O filme finda na intimidade de um casal, na introspecção de um homem que seguiu focado mesmo enterrando amigos. A busca pelo toque da esposa através do vidro da quarentena revela, enfim, Neil em toda a sua essência. Ele permanece com o rosto inexpressivo, mas é o momento mais fácil de ceder e sentir o que o personagem está sentindo.

O Primeiro Homem não é sobre a chegada do Homem à Lua, é sobre o Homem ser maior do que a conquista. Não é sobre glória, é sobre o que fica pelo caminho até a chegada dela. É sobre o fim ser pequeno quando se perde tanto pelo meio. É sobre o desespero de estar vivo e, ao mesmo tempo, ter coragem para viver. É, sobretudo, sobre ser um pequeno grão de vida e o quanto se pode fazer a diferença quando lhe é permitida a chance.