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Crítica | A Inventora narra o caso Theranos, mas peca em questionamento fraco

Por| 30 de Junho de 2019 às 08h35

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(Imagem: Reprodução/Forbes)
(Imagem: Reprodução/Forbes)

No Vale do Silício, existe um ditado não escrito: “Fake it until you make it” (“Finja algo até conseguir esse algo”, em uma tradução livre). Basicamente, a premissa desse ditado é: se um produto ou solução é esperado de sua empresa e você não tem isso em mãos, não admita, mas enrole o público até que isso seja desenvolvido.

E o documentário A Inventora: À Busca de Sangue no Vale do Silício usa justamente esse pano de fundo. A produção é parte do calendário de criações documentais autorais da HBO, e o Canaltech foi convidado pelo braço brasileiro da emissora para assistir ao longa antes de sua estreia, programada para esta segunda-feira, dia 1º de julho, às 22h na TV por assinatura.

A Inventora narra o caso da startup de exames clínicos Theranos, fundada e liderada por Elizabeth Holmes, que, na época, era considerada uma das grandes mentes do empreendorismo clínico, sendo equiparada a nomes como Steve Jobs (de quem ela é assumidamente fã) e Bill Gates. O caso tornou-se amplamente conhecido no mundo todo como um dos mais marcantes do Vale do Silício, sendo um dos episódios mais memoráveis de ascensão e queda de uma startup, bem como evidencia o quão longe certas pessoas estão dispostas a ir em nome de um objetivo.

Volta e meia a história acaba aparecendo em conversas de diretores, gestores e executivos de liderança em empresas, geralmente como um case a ser discutido. E é justamente nesse ponto que se destaca o documentário: ao narrar, por meio de depoimentos de ex-funcionários, repórteres e autoridades do governo dos EUA durante a gestão Barack Obama, A Inventora é um relato claro de maniqueísmo corporativo, ganância empresarial e, acima de tudo, obstinação em cima de uma ideia. Alguém tem um objetivo fixo e não mede consequências do quão longe está disposta a ir por ele.

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O filme começa com testemunhos da própria Elizabeth Holmes, contando do sonho de simplificar exames clínicos (algo que viria a se tornar o slogan da Theranos), seu medo de agulhas e como ela esperava que a empresa que criou após abandonar a Universidade de Stanford aos 19 anos fosse revolucionar o setor clínico dos Estados Unidos. É uma entrada bem indicada para o filme, haja vista que Elizabeth Holmes passa a ideia de ser uma pessoa com fé em um objetivo, trazendo até uma certa ingenuidade que, querendo ou não, a levou a caminhar ao lado de gigantes do Vale do Silício.

Dá um ótimo pano de fundo para o rumo soturno que a narrativa do documentário traria logo em seguida: a Theranos, que chegou a ser avaliada em até US$ 10 bilhões em seu auge, tornou-se o case de análise empresarial que simbolizaria a derrocada de uma startup, mostrando em A Inventora toda a sua trajetória por meio de depoimentos de professores da CEO, ex-funcionários e até de ex-membros do governo norte-americano.

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O documentário busca remontar todo o “caso Theranos” sob a ótica de quem vivenciou a rotina diária da empresa em primeira mão, além de conseguir elucidar os fatos que colocaram a empresa na mira da Justiça dos EUA e escrutínio da mesma mídia que, não muitos anos antes, a exaltava — além de colocar Elizabeth Holmes sob análise crítica de seu comportamento e pensamento.

Holmes, aliás, torna-se o pilar de sustentação de toda a produção: tentando elucidar o que se passava na cabeça da CEO, o documentário não mede esforços para pintá-la como uma pessoa gananciosa, desconexa da realidade e que estaria disposta a tudo para fazer com que seu objetivo — o sucesso da companhia no intuito de revolucionar a indústria clínica/hospitalar — fosse atingido. Holmes é facilmente percebida aqui como uma mulher carismática, que conseguiu “levar na ideia” muitas pessoas influentes, que lhe abriram caminhos para locais inimagináveis, como o Tesouro norte-americano, a FDA (agência regulatória que libera remédios e procedimentos clínicos nos EUA) e investidores fortes, como dois ex-secretários de governo e especialistas econômicos.

Um aspecto interessante do documentário em si é que o aparelho conhecido como “Edison” (em homenagem ao inventor Thomas Edison) — a principal figura da queda da Theranos — tem certa relevância, mas não ganha tanto destaque quanto Elizabeth. O aparelho era um dispositivo portátil, capaz de entregar, segundo prometia a empresa, exames de sangue com alta precisão e apontar diversos quadros clínicos apenas com uma picada no dedo e menos de uma hora de análise. As concorrentes diretas da Theranos faziam o mesmo? Sim, em dias, e apenas com extração de sangue intravenoso. Parece mesmo algo além da imaginação.

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E era. O Edison não entregava nem o básico do que prometia e muitos exames conduzidos pela Theranos — que havia assegurado acordos comerciais com a rede de mercados Walgreens para estabelecer “centros de bem-estar” em seus postos no Arizona — eram secretamente feitos em máquinas tradicionais. Suspeitas começaram a surgir, a mídia começou a investigar, desculpas atrás de desculpas eram oferecidas pela empresa, que começava a gastar todo o capital dos investimentos que vinha atraindo.

Entretanto, o filme começa a perder a mão em aspectos técnicos: embora a narrativa seja de uma capacidade primorosa — cortesia da direção do vencedor do Oscar, Alex Gibney —, ele não se envergonha de se intrometer nos depoimentos, anunciando cortes de forma desnecessária, especialmente quando as respostas dos entrevistados são percebidas como insuficientes para ilustrar um fato ou episódio específico.

Outra falha reside justamente no “excesso” de Elizabeth Holmes: notoriamente reclusa em sua personalidade, a CEO da Theranos nunca foi de fazer muitas aparições públicas nem tirar muitas imagens de si mesma. Salvo por apresentações próprias no TEDTalks e algumas capas em publicações importantes como a Forbes ou New Yorker, poucas são as imagens dela. Isso transparece no filme: as mesmas imagens são repetidas diversas vezes, a meras menções ao nome da executiva, tornando o ritmo enfadonho e “desprendendo” a atenção do espectador. Em uma hora, você está imerso na narrativa de um depoimento de algum ex-funcionário, se perguntando o que vem a seguir, apenas para ser subitamente cortado por uma foto de Holmes (que você já viu antes, três testemunhos atrás) e fica com aquela cara de “ué”.

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No geral, A Intenvora: À Busca de Sangue no Vale do Silício é um ótimo documentário. Um golaço da HBO em assegurar a transmissão dele diretamente para os canais da emissora. O filme executa muito bem o seu papel de mostrar a figura de Elizabeth Holmes como uma pessoa carismática, elevando-a ao ponto máximo como uma pessoa atrás de um sonho, apenas para fazê-la cair frente a todos os fatos que se desenrolaram em sua gestão, bem como sua propensão a enganar funcionários, investidores e amigos de família em nome do sucesso de sua empresa. As ameaças e o medo de alguns dos entrevistados do documentário são praticamente palpáveis.

Mas senti falta de uma pegada mais “de confronto”. Evidentemente, ninguém esperava que Gibney e equipe conseguissem falar com a executiva, mas a ausência de um “outro lado” faz muita falta. Especialmente considerando que o caso Theranos ainda está percorrendo nos tribunais: processada por fraude massiva pela Justiça dos EUA, Elizabeth Holmes declarou-se inocente. O julgamento final — já considerando recursos e apelações — deve começar apenas em setembro de 2020. Ou seja, ainda há o que ser discutido.

Enquanto isso, Holmes secretamente casou-se neste mês de junho, com o bilionário Billy Evans, de 27 anos, herdeiro da rede de hotéis Evans. Ou não: relatos do casamento não foram confirmados pela Vanity Fair, que deu a notícia em primeira mão, citando fontes anônimas.

O veredicto final: vá assistir A Inventora: À Busca de Sangue no Vale do Silício. É o tipo de documentário que prende a atenção até mesmo de quem não gosta do gênero. Mas tenha a ciência de que, tal qual a Theranos em si, dava sim para fazer um pouco mais.