Crítica | Histórias Assustadoras para Contar no Escuro
Por Laísa Trojaike |
As lendas urbanas e folclóricas têm um poder que outras histórias de terror não têm: elas aconteceram perto de onde você está ou aconteceram com alguém que você conhece (ou pelo menos com o amigo de um amigo de um amigo...). Uma coisa é a história do Stephen King ambientada lá no Maine, outra coisa é o fantasma que assombra o banheiro da minha escola. Mais próximo, mais assustador. E é nesse tipo de terror que se debruça Histórias Assustadoras para Contar no Escuro. Adicione a isso o terror de uma doença que se espalha, contaminando e, por vezes, condenando as pessoas ao seu redor, uma a uma: a sensação de alívio por ainda não ter sido o alvo que se soma ao terror de que o próximo pode ser você.
Lançado em 1981, o livro infantil (sim, isso mesmo, para crianças) aterrorizou gerações e chamou a atenção de pais e profissionais que iniciaram uma espécie de caça às bruxas, fazendo com que o livro fosse banido de escolas. Tudo isso adicionou uma camada de proibido àquilo que já era sedutor. Somadas às histórias assustadoras, ainda havia as ilustrações de Stephen Gammell, algumas capazes de eriçar os pelos da nuca de um adulto, tamanha a sua estranheza.
A partir daqui, a crítica pode conter spoilers!
Medo
A sensação de conexão é fundamental quando se trata de folclore e lenda urbana, e André Øvredal dá esse tom na sequência de abertura do filme através de planos sequência que nos levam de um personagem a outro, personagens que estão desenvolvendo ações completamente distintas ou que nem sequer se conhecem, mas que estão prestes a ficar íntima e mortalmente envolvidos. A sequência também chama a atenção para a própria direção em si, de modo que provavelmente este passa a ser o melhor título do currículo de Øvredal.
Finalmente conectados, os personagens centrais da trama de Histórias Assustadoras para Contar no Escuro arriscam uma aventura a uma casa mal-assombrada e os clichês geralmente questionáveis ganham sentido aqui: a lenda urbana conta que é preciso que a invocação de Sarah Bellows seja feita à noite. Contada com aparente diversão e descrença, a lenda permanece desacreditada pelos personagens e compreende-se que eles estão ali justamente porque julgam não correr riscos, além da sugestão de que é um passeio mais ou menos recorrente do grupo de amigos. O aparecimento do forasteiro Ramón Morales (Michael Garza) é uma inserção interessante pelo mistério que ronda o personagem, mas ao mesmo tempo adiciona ao grupo uma sagacidade pouco crível: é capaz de abrir cadeados antigos com uma caneta e, mesmo no escuro, encontra uma passagem secreta nunca antes vista.
A partir do livro encontrado na casa, o terror começa a ganhar formas. A ideia de que algo pode ser assustador para uma pessoa, mas não representar ameaça alguma para outra é o que leva à criação dos mais diversos tipo de monstros: há uma criatura para cada medo. Em meio a todas essas possibilidades, existem criaturas que são uma espécie de coringa: criaturas que dependem do seu medo para lhe aterrorizar, de modo que ninguém está salvo. O bicho-papão da saga Harry Potter, A Coisa de Stephen King e o livro de Sarah Bellows seguem a mesma lógica: todos eles partem dos piores medos da sua vítima. Esse tipo de personagem permite que, ainda que o que aconteça na tela não cause medo, o espectador possa projetar um cenário no qual seus piores medos se tornam realidade.
E é justamente o senso de realidade que faz um grande terror: é necessário que pareça próximo, que pareça viável e possível ainda que minimamente para que o terror funcione. Para isso é imprescindível que as criaturas sejam realistas e a presença de Guillermo del Toro na produção cria a expectativa (uma quase exigência, na verdade) de que os efeitos práticos irão roubar a cena, afinal, estamos falando do diretor de Hellboy (2004), O Labirinto do Fauno (2006) e A Forma da Água (2017). Ao assistir Histórias Assustadoras para Contar no Escuro, no entanto, há a mesma sensação que podemos sentir em A Colina Escarlate (de Guillermo del Toro, 2015): os monstros não parecem assustadores como os de outros filmes em que del Toro está envolvido simplesmente porque parecem digitais (ou boa parte deles parece ser). É surpreendente descobrir que os seres de Histórias Assustadoras para Contar no Escuro são efeitos práticos: cada um deles é um ator ou atriz com características indispensáveis para o personagem (o que inclui o contorcionismo inumano do Jangly Man) e cada um foi minuciosamente maquiado. Há algo, no entanto, que parece remover a camada de realidade e é difícil entender se foi algum uso de CGI ou se a própria direção não contribuiu para fazê-los realistas em cena.
De qualquer modo, embora tenha sido feito para um público contemporâneo, os monstros atingem diretamente os leitores dos livros ilustrados por Stephen Gammell, uma vez que foram fielmente copiados das artes.
Histórias
Da primeira sequência aos momentos finais, um mesmo tema, aparentemente desconexo com o a trama do filme, é repetido: a propaganda política das eleições de 1968, as discussões sobre a Guerra do Vietnã, a eleição de Richard Nixon. Esse é um dos períodos mais controversos da política estadunidense, momentos cuja história precisou ser inúmeras vezes reescrita. Houve a história da propaganda e a história de uma verdade posteriormente revelada. E nada disso é por acaso.
Se algo se torna mais aterrorizante à medida que é mais real e mais próximo de nós, há certamente uma dose considerável de terror na ideia de ser convocado para a guerra ou de ver o governo do seu país ruir com um escândalo como o de Watergate. Para essas formas reais de horror, as principais armas sempre foram os contadores de histórias: artistas, jornalistas, historiadores.
O paralelo é inevitável: a maldição de Sarah Bellows é a raiva do injustiçado, cuja história jamais foi contada. Sarah havia denunciado que a fábrica da família era a responsável pela morte das crianças da região, pois a água havia sido contaminada com mercúrio. Sua própria família, em retaliação, a mantinha presa e, posteriormente, internada em um hospício, onde era constantemente torturada e acusada de usar magia para matar as crianças. Tirando a parte da maldição, tudo nessa história é perfeitamente crível, porque sabemos que esse tipo de coisa acontecia (e ainda acontece). O horror.
A princípio muito espertos, o casal protagonista, Ramón e Stella Nicholls (Zoe Margaret Colletti) demoram tempo demais para entender que uma história mal contada precisa ser reescrita: é difícil de acreditar que justamente a personagem que é escritora não tenha se atrevido a pelo menos tentar escrever para combater uma má história. Além disso, se a caneta que precisa de sangue como tinta era a verdadeira chave para a escrita, também não há motivo para que os roteiristas deixassem esse pensamento para o desfecho da história.
Tem mais?
Assim como as ilustrações do livro no qual é baseado, o filme é assustador, mas não é gráfico. A maioria dos personagens não morre, eles apenas desaparecem e deixam a sensação de que, ao final, quando a maldição enfim for quebrada, eles poderão retornar, o que surpreendentemente não acontece. O não retorno de dois dos personagens centrais é um dos grandes trunfos por dois motivos: primeiramente porque não há final feliz e, em segundo lugar porque deixa espaço para uma sequência.
Infelizmente, aqui no Brasil o livro não é exatamente um clássico infanto-juvenil e não está no imaginário de muitas pessoas, de modo que é preciso que o filme tenha valor por si próprio (como sempre deve ser no caso de adaptações). Fãs de terror provavelmente sentirão um sabor nostálgico na obra, se não pelo livro, pelo menos pelas referências à clássicos do terror como O Iluminado (de Stanley Kubrick, 1980) e Colheita Maldita (de Fritz Kiersch, 1984). De modo geral, no entanto, é difícil imaginar que Histórias Assustadoras para Contar no Escuro tenha sucesso suficiente para ganhar uma sequência, mas estarei aguardando por ela.