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Crítica | Hellboy e sua pegada digital trash

Por| 27 de Maio de 2019 às 21h10

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“De boas intenções o inferno está cheio.” Hellboy deve personificar essa expressão melhor do que qualquer outro personagem. E, na forma mais literal e sem interpretações muito subjetivas, ele é, de fato, um ser nascido nas profundezas do submundo e que finda tendo o destino de proteger a humanidade (ao menos parte dela) do mal.

Por si só, essa concepção já o torna complexo e se trata de um esqueleto perfeito para dar origem a um universo rico, cheio de possibilidades. Afinal, além da complexidade tão humana, a criatividade pode se sentir livre para apostar em todo tipo de criatura quando ao tratar de uma mitologia aberta.

A primeira aparição do Irmão Vermelho se deu em 1991, quando seu criador, Mike Mignola, o desenhou durante a Great Salt Lake Convention. Ainda viria a aparecer, em 1993, na capa de uma revista italiana chamada Dime Press, no quarto volume desta. No mesmo ano, a DC teria gostado da ideia de lançar Hellboy, mas teria ficado receosa pelo “Hell” do nome (será que ele entraria para a Liga da Justiça?). Foi então que a Dark Horse Comics abraçou a ideia de Mignola e publicou uma primeira história com o personagem já em sua versão final, mas em preto e branco, na San Diego Comic-Com de 1993.

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Cuidado! A partir daqui esta crítica pode conter spoilers!

Para exagerar, muita coragem é necessária

Esse retorno de Hellboy aos cinemas acontece após um processo cheio de indefinições. Antes, o diretor Guillermo del Toro (de A Forma da Água, 2017) havia comandado dois ótimos filmes. Provavelmente, por ser financeiramente podado, ele (Del Toro) decidiu direcionar sua carreira para outro lado, vendo, um pouco mais tarde, o fechamento da trilogia ser oferecido para Neil Marshall (do bom Centurião, 2007). Hesitante, Marshall recuou, porque não gostaria de dar continuidade ao trabalho de um colega. Pouco depois, com o aval do próprio Del Toro, aceitou dirigir um reboot: eis o filme em questão.

Um prólogo cheio de indecisões e tantos problemas dificilmente resultariam em uma obra estruturalmente equilibrada. O reinício de Hellboy é o resultado de um processo arrastado que, como aposta, passa do universo comedido e sistemático de Del Toro para o exagero visceral de Marshall. Ao mesmo tempo, esse exagero parece clamar por um melhor orçamento, fazendo com que o filme sofra em uma luta até certo ponto covarde contra si mesmo.

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Nesse sentido, Marshall é bastante corajoso, elaborando cenas que vão muito além das possibilidades financeiras. É uma coragem que atiça a curiosidade para se conhecer o que vem à frente, mas, ao mesmo tempo, pode parecer irresponsável por decidir seguir com ideias estéticas que não condizem com a realidade orçamentária.

Não há medo, por exemplo, de dar prosseguimento a um plano-sequência em que o protagonista enfrenta três gigantes. A cena é um espetáculo à parte pela técnica empregada. Dos voos em queda de Hellboy após ser atingido às corridas dramáticas daqueles seres devoradores de tutano, é tudo muito compreensível e dinâmico. O problema é que a resolução é rápida e o pensamento de “tudo o que é bom dura pouco” pode ser inevitável.

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Por outro lado, essa sequência é muito favorecida ao ser precedida por um fato sem qualquer consistência: Enquanto Hellboy é afligido por uma emboscada, os tais três gigantes – que fazem a terra tremer ao caminhar – aproximam-se dos emboscadores sem que eles (e o público) percebam por um só instante. É tão repentino que o efeito de não entender como aquilo ocorreu pode fazer com que o dito plano-sequência que se segue, tão bem pensado, seja completamente ofuscado e o espectador nem perceba a sua força.

O apocalipse e o sangue dos mutilados

É nesse ponto que o limite entre o que é a direção de Marshall e o roteiro de Andrew Cosby (um dos criadores da série Eureka) pode ser delineado. A junção das duas cenas escancara a fragilidade das situações, o quanto tudo acontece da forma mais banal possível. O talento de Marshall procura dar alguma armadura para a história delineada por Cosby, mas fica difícil proteger um texto que praticamente mata o Hellboy em uma luta contra um pequeno grupo de humanos e, em seguida, faz com que ele extermine três gigantes com sem tanta dificuldade.

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É claro que uma decisão duvidosa não basta para exterminar a credibilidade de um roteiro. O que acontece é uma sucessão de facilidades para que o filme caminhe em frente e, entre essas facilidades, uma narração descritiva parece duvidar da capacidade de percepção do espectador. Se, inicialmente, o que se escuta é exatamente aquilo que está sendo mostrado – tornando o texto completamente descartável (a menos que a intenção tenha sido uma espécie de audiodescrição) –, durante o filme, há um intenso reforço sobre Nimue (Milla Jovovich), sobre ela ser a tal Rainha de Sangue, aquela que trará o apocalipse caso encontre o seu rei. Esse fato é tão repetido que Nimue tende a perder potência para a visão do espectador – o que se comprovaria internamente no terceiro ato, quando ela se torna subalterna de um ainda mais endiabrado Hellboy (o pretendente a rei), praticamente desconstruindo sua majestade.

De qualquer forma, o arco que apresenta a Rainha de Sangue, direto das HQs, possibilita cenas de muita beleza apocalíptica. O mesmo terceiro ato parece dar vida a cenários pintados pelo artista holandês Hieronymus Bosch, que viveu entre os séculos XV e XVI. O exagero de Marshall permanece e, a esse ponto, transforma o apocalipse em um show de horrores que, apesar de esteticamente bonito, pode ser pouco prazeroso de se ver. Mutilações, corpos sendo rasgados... nada se salva em uma forma utilizada pelo diretor para chocar e, de repente, causar alguma imersão. Por isso, sentir-se imerso no universo de Hellboy durante o apocalipse é, no mínimo, aterrorizante.

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É, portanto, triste que a qualidade da computação gráfica – muito por motivos financeiros – seja um fator desestabilizante dessa imersão. Se as bestas do apocalipse surgem e se assemelham ao Anjo da Morte de Del Toro (ao menos uma delas) e a Baba Yaga é assustadoramente real – em sua casa com pernas que reflete sombriamente a animação O Castelo Animado (do gênio japonês Hayao Miyazaki) –, o sangue dos mutilados é tão autêntico quanto uma nota de três reais. E não somente o sangue dos mutilados: Quando Nimue volta à árvore da vida para recuperar seus fluidos, a opção por mostrar o líquido digital saindo do tronco e voando até a mão da recomposta rainha é no mínimo discutível. Seria, como a narração expositiva, mais uma forma de duvidar da capacidade intelectual do espectador? Porque bastaria, de repente, ela encostar a mão na árvore para sentir-se que o sangue estaria retornando ao corpo. A depender do modo que se pensa, a utilização de menos recursos pode causar uma melhor impressão.

De boas intenções...

Muitas dessas questões parecem encaminhar Hellboy pelo caminho do cinema trash, a partir de tudo aquilo que, esteticamente, rende homenagens a filmes feitos com baixíssimo orçamento. E há fatos que rendem pontos, como os cinco que criam o gênero trash indicados pelo jornalista e escritor italiano Tommaso Labranca: a liberdade de expressão, o maximalismo, a contaminação, a incongruência e a emulação falha.

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Hellboy assim o é: repleto de uma liberdade de expressão – que é pobremente trabalhada e acaba por ficar completamente alheia às questões sociais fundamentais do personagem-título (alguém vindo de baixo e modificado pelo meio e por uma boa educação, a relação com o pai mesmo sendo tão diferente deste, a relação de raça com a humanidade); seu maximalismo reside no fato de que há um padrão bem delineado na construção das duas horas, mas não há um aprisionamento a esse padrão – e isso acaba se tornando uma infeliz bagunça; é contaminado por muitas referências – tantas que pode se tornar um amontoado sem identidade; quase que inteiramente incongruente – às vezes, com o roteiro beirando a irracionalidade e com a trilha sonora de Benjamin Wallfisch (de Shazam!) passeando entre uma orquestra genérica e a quinta sinfonia de Beethoven em modo heavy metal; e de uma emulação dolorosamente falha, na tentativa de referenciar tantos lados sem antes encontrar sua própria personalidade.

“De boas intenções o inferno está cheio” torna-se, enfim, um ditado que pode se referir tanto literalmente e internamente ao personagem – funcionando como uma síntese sobre quem é o Hellboy de Mignola – quanto em sua interpretação irônica sobre o filme. Há, sem dúvidas, boas intenções no trabalho de Marshall, Cosby e toda a equipe, mas, às vezes, as boas intenções mascaram o que precisa de muito mais. Resta aproveitar o bom trabalho de David Harbour como o Braço Direito do Destino, as boas sequências que estão espalhadas por aí... e aceitar a pegada digital trash. Feito isso, Hellboy pode valer a pena de alguma forma.