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Crítica | Halloween: o mal permanece vivo

Por| 26 de Outubro de 2018 às 20h50

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Crítica | Halloween: o mal permanece vivo
Crítica | Halloween: o mal permanece vivo

Entre tantas correntes e propostas, há aquela que diz que um filme deve se sustentar por si só. Nesse caso, o espectador não precisa de ferramentas de outras fontes para compreender o que está assistindo, sejam elas literárias, musicais, de filmes anteriores ou de qualquer outra perspectiva. Cada filme é, assim, uma galáxia independente de si mesmo, podendo, claro, formar um universo.

É uma perspectiva válida que geralmente rende os melhores filmes (as galáxias) de um universo único. Sendo o mais novo filme do Universo Cinematográfico Marvel ou a mais nova sequência de Velozes e Furiosos, trata-se de um exercício interessante imaginar a produção como obra única. Será que ela sobrevive?

Cuidado! Esta crítica pode conter spoilers!

O legado de Carpenter e a subversão do original

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Assim, chega-se a Halloween e à tarefa ingrata de ser uma sequência do surpreendente (na época) sucesso do filme de 1978, Halloween: A Noite do Terror, de John Carpenter. Ignorando todas os encadeamentos e remakes, a nova produção, que tem o dedo de Carpenter, propõe-se como não somente uma continuação direta 40 anos após (tempo passado entre os filmes e dentro da própria história), mas como uma espécie de visão oposta.

É verdade que o estilo de Carpenter é único. Trata-se de um diretor que possui uma linguagem natural muito particular. No filme original, o de 1978, ele intercala imagens estáticas, que ativam o medo através da curiosidade, com movimentos de câmera reveladores que são característicos de sua filmografia. Além disso, talvez seja o diretor que tem a maior facilidade em modificar o ponto de vista de forma orgânica: ora é subjetivo (assumindo as ações de um personagem), ora é objetivo (simplesmente mostrando o que está acontecendo). Essas trocas conseguem deixar o espectador quase sempre em completa suspensão, hipnotizado pela técnica de um mago das câmeras.

Halloween (esse de 2018), então, subverte o original. De uma forma inteligente, o roteiro de David Gordon Green, Danny McBride e Jeff Fradley aproveita-se dos seus personagens principais e constrói uma história com muitos acontecimentos espelhados. Há diversos pontos que comprovam essa estratégia do roteiro: Enquanto Michael Myers caia de cima de uma casa há 40 anos e, logo depois, desaparecia, dessa vez o mesmo acontece com Laurie Strode (Jamie Lee Curtis); as mortes de Bob (em 1978) e de Dave (agora) são praticamente iguais (diferem apenas na região do corpo pela qual são dependurados); enquanto antes Myers apareceu para Laurie através da janela da escola, agora a própria Laurie aparece para sua neta; se antes Laurie corria batendo de porta em porta, agora é Allyson (Andi Matichak, a neta) que o faz.

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A ressureição do anticristo e o Planeta Proibido

Como se não bastasse esse grau de reverência à matéria-prima, o início de Halloween reapresenta a persona de Michael Myers de uma maneira tão fantástica que, ali, já dá ao filme a possibilidade de se manter com as próprias pernas. Concedendo a Myers uma força sobrenatural que faz com que diversos coadjuvantes se agitem, a forma com que David Gordon Green (que além de ter coescrito o roteiro, dirigiu o filme) dimensiona o personagem reflete-se no conceito de que ele (Myers) é o próprio mal.

Portanto, torna-se desnecessário que o filme crie camadas de complexidade para desenvolvê-lo e dar-lhe dimensões. Myers não é um vilão, ele é a vilania. Ele não é uma pessoa má, ele é o mal.

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A própria abertura, que recria a do seu antecessor, já havia dado dicas desse poder extra-humano. Se um lento close-in seguia em direção à abóbora há 40 anos, agora há um fruto esmagado que se recompõe. É quase que uma ressurreição de algo literalmente morto (a abóbora). Mas, no caso, não se trata de uma referência ao renascimento de Jesus. Trata-se, novamente, no sentido oposto, do anticristo.

Gordon Green, por sinal, é um diretor que tem se provado eclético em relação a gêneros. Apesar de ser irregular em sua carreira, dirigiu Jake Gyllenhaal no bom O que te Faz Mais Forte (2017), já provou que Nicolas Cage ainda pode render atuações de alto nível com Joe (2013) e, lá em 2001, lançou uma pérola chamada George Washington. Halloween, dessa forma, é mais um acerto de Gordon Green por diversos motivos: consegue aumentar a perversidade de Myers através da escolha por mortes gráficas — ausentes no anterior — e da morte de uma criança; apesar do roteiro pouco dimensionar a mente de Laurie, ele a faz tomar as rédeas, retirando-a daquela posição de mocinha em perigo e colocando-a em ação ativa; junto à direção de arte de Sean White, constrói uma gama de referências que vão do giallo (gênero italiano que originou os slashers como Myers, Freddy Krueger e Jason) e seus quase onipresentes manequins a um dos filmes mais importantes da ficção científica na história, Planeta Proibido (que passa em uma TV em determinado ponto).

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Planeta Proibido, por sinal, trata de um ser assassino misterioso que só existe devido à mente de um dos personagens, que jura estar lutando contra tal aberração invisível — algo que rima facilmente com o hiato de 40 anos, tempo no qual Laurie lutou contra um trauma até que, enfim, passa a enfrentá-lo. Ela, na verdade, não enfrenta somente Michael, enfrenta também a si mesma.

O roteiro que macula e a poeira no vento

Embora a riqueza promovida pela direção e pela equipe de arte seja algo fantástico, o roteiro (volta-se a ele) acaba perdendo a mão em algumas soluções que maculam qualquer verossimilhança. Se o primeiro filme tratava de um ser ainda desconhecido, fazendo com que as atitudes representadas fossem completamente críveis, aqui a sua crueldade está mais do que embasada. Dito isso, ver alguns personagens indo ao encontro da morte tão facilmente pode ser motivo de suspender qualquer relação com o filme por alguns instantes.

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Por outro lado, a direção de fotografia de Michael Simmonds beira a genialidade. Simmonds, que nunca havia realizado um trabalho de nível tão elevado, merece destaque porque, ao mesmo tempo em que reconstrói a ambiência de Dean Cundey (lendário parceiro de Carpenter, Spielberg, Zemeckis...), dando sombra a quem é das sombras, luz a quem é da luz e optando pelo ruído estético nas cenas mais escuras, ainda consegue criar uma metáfora com uma expressão que deu até título de música: Dust in the Wind (poeira no vento, em tradução livre), da banda Kansas, curiosamente lançada em 1977, um ano antes do lançamento do filme dirigido por Carpenter.

No terceiro ato, no porão-bunker que o roteiro gratuitamente (infelizmente) transforma em armadilha, Simmonds faz com que cada raio de luz que entra no ambiente seja tomado por um sem número de grãos de poeira. Ali, na luz, está a representação metafórica do que são as pessoas na visão de Michael Myers: poeira no vento.

“Eu fecho meus olhos apenas por um momento e o momento se foi. Todos os meus sonhos passam diante dos meus olhos, uma curiosidade. Poeira no vento... Tudo o que nós somos é poeira no vento. A mesma velha música. Apenas uma gota d'água em um mar infinito. Tudo o que fazemos cai em pedaços embora nós nos recusemos a enxergar.” – Trecho de Dust in the Wind em tradução livre.

O bicho-papão nunca morrerá

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Michael Myers, que nunca quis realmente matar Laurie, sendo ela sua única ligação com qualquer resquício de humanidade (lembra-se que, quando teve a maior oportunidade de a matar no filme de 1978, ele apenas rasgou parte de sua roupa), tão-somente a quer para ele. Assim como o Dr. Sartain (Haluk Bilginer) demonstra ser alguém possuído por uma obsessão (pelo próprio Myers), o slasher mascarado é ainda mais perigoso por ser obsessivo. A diferença é que, como dito, ele (Myers) não é alguém.

Ele é o bicho-papão e, como tal, transcende gerações. Sua respiração no pós-créditos, como no filme de 1978, apenas revela que o mal nunca morre. O mal permanece vivo. É necessário que seja combatido para que durma por 40 anos... quem sabe mais. Porém, de repente, com o hiato no tempo real bem menor. O cinema agradece demais essa revigorada de gênero.