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Crítica | Escobar: A Traição é um excelente e perigoso mais do mesmo

Por| 05 de Setembro de 2018 às 11h20

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California Filmes
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A história de Pablo Escobar não é uma novidade. Seja através das inúmeras mídias, de documentários e ficções para televisão e cinema e da comentada série Narcos (produzida pela Netflix e protagonizada por Wagner Moura), o maior traficante ao qual a Colômbia (possivelmente o mundo) já deu a luz foi se tornando uma lenda do crime; uma lenda que, ainda em vida, era complexa o suficiente para ter o seu grau de Robin Hood (como é citado durante Escobar: A Traição) e para incomodar uma das maiores potências do planeta (os EUA), expandindo o tráfico de cocaína através de rotas pré-criadas por Griselda Blanco – como bem revela o filme para TV Cocaine Godmother, estrelado por Catherine Zeta-Jones.

A imagem invisível de um homem que virou música de death metal

Escobar: A Traição enriquece essa gama de produções sem enriquecer a temática ou a linguagem do cinema. Ao mesmo tempo em que nada de novo é visto na direção do espanhol Fernando León de Aranoa, o comum é realizado com extrema eficiência. Igualmente, o roteiro inspirado em um livro tão pessoal escrito pela jornalista Virginia Vallejo parece recair em muito do que já fora produzido e, ainda assim, mostra-se competente o suficiente para fazer a história caminhar.

Dessa maneira, ressaltar que o filme é inválido por ser “mais do mesmo” pode indicar uma falha inexistente em Escobar: A Traição. Se o filme não atende expectativas pessoais, a culpa é da criação dessas expectativas e não do filme em si. Logo, inspirar-se (e não se basear) no livro da jornalista é apenas uma indicação de matéria-prima, uma vez que o que há para se extrair de um livro parte de um julgamento particular.

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Cuidado! Deste ponto em diante a crítica pode conter spoilers!

Dito isso, o roteiro adaptado pelo próprio Fernando León concentra-se nas atitudes de Escobar (Javier Bardem) sem se apegar ao seu caso amoroso com Virginia (Penélope Cruz). Essa escolha encontra caminhos fascinantes, como a delicada relação do traficante com sua esposa (Julieth Restrepo) e sua proteção para com os filhos. Simultaneamente, banca Virginia como um troféu, exibindo-a, sempre que possível, nas reuniões intocadas da máfia – o que diz ainda mais sobre El Patrón (apelido usado posteriormente até como título de música, como o fez a banda mexicana de death metal Brujeria – e a tradução da letra é bem carregada).

Além disso, essa obsessão do roteiro e da direção por Escobar constrói uma abertura de qualidade narrativa excepcional: Vê-se, em destaque, durante toda a sequência inicial, a personagem de Penélope Cruz, mas a cada momento a imagem do traficante parece tomar conta de tudo. É como perceber a ligação tão íntima entre a literatura e o cinema através do texto narrado por Virginia e das imagens arquitetadas cuidadosamente por Fernando León e pela edição de Nacho Ruiz Capillas.

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A força que se tornou um carisma perigoso

E assim se dá todo o Escobar: A Traição, com a figura cheia de força de um homem que cresceu no mundo do crime com muita velocidade. Por outro lado, há uma complexidade preocupante: Essa força foi remodelada em carisma por Bardem, algo que tem algum poder de fazer o filme perder o ponto-chave de revelar os bastidores de uma degradação moral e acabar transformando-se em uma espécie de mártir contra o sistema.

A cena, por exemplo, em que Escobar sai com a filha nos braços por dentro do presídio, prometendo a ela um maravilhoso sorvete de morango e, ao não conseguir sair, deixa escorrer uma lágrima é de causar uma estranha comoção. Mérito, novamente, da direção e da edição, que crescem a tensão até ele (Escobar) ficar sob a mira de dezenas de soldados. O close final (um primeiríssimo plano) dessa sequência demonstra, sem qualquer palavra, a fragilidade e o empenho daquele homem para parecer a melhor pessoa do universo para seus filhos ao passo que reconfirma o quão fantástico é Bardem. É uma humanização socialmente perigosa e discutível, mas cinematograficamente irretocável.

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Por sua vez, a trilha sonora é de uma habilidade inquestionável ao procurar amenizar essa humanização de um sujeito que, afinal de contas, foi um criminoso. Para isso, o compositor argentino Federico Jusid faz duas escolhas de muita inteligência: Quando Escobar está realizando alguma boa ação, sua composição ganha ares circenses, como se aquilo tudo fosse encenação, palhaçada, distanciando-o de um verdadeiro Robin Hood; quando a situação aperta, Jusid faz a sua música tornar-se mais séria, contribuindo para o suspense do filme até mesmo com as pausas, com o silêncio. A cena em que Virginia fica presa dentro de uma loja de penhores é brilhante nesse sentido.

Espanhóis que são colombianos que falam inglês com sotaque da Espanha

É estranho, porém, perceber que foi escalada uma dupla protagonista espanhola para viver amantes colombianos que falam inglês (com um sotaque característico da Espanha) em praticamente todo o filme, dirigidos por outro espanhol e com diversos membros da equipe que têm o espanhol como língua materna. É um fato que se deve à pouquíssima aceitação comercial de filmes legendados e até mesmo dublados nos EUA, o que leva a muitos remakes. Diferentemente da produção de Narcos, que obrigou Wagner Moura a aprender o espanhol (e ele o fez com muita competência – por mais que não substitua um nativo), Escobar: A Traição caiu nesse estigma monetário (como outros tantos).

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Da abertura ao fim dos créditos

Escobar: A Traição é, enfim, um filme sem novidades, mas conduzido de uma forma que assisti-lo torna-se um grande prazer. Seja pela direção – comum, mas competente –, pelo trabalho musical cheio de contrastes, pela história pesada – socialmente perigosa devido à intensa humanização de Don Pablo – ou pelo desfile de talento de um dos casais mais incríveis do cinema, as duas horas e três minutos de duração valem a pena da abertura ao fim dos créditos.