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Crítica | Entre Realidades é um legado sobre compaixão e empatia

Por| 20 de Fevereiro de 2020 às 10h27

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Um filme, como arte que é, pode provocar muitas sensações. Nessa perspectiva, escrever sobre uma arte passa a ser um exercício que mistura a experiência emocional passada e o conhecimento (ou não) de linguagem. Ater-se somente a um dos dois pode fazer com que o texto fique desequilibrado ou que, no mínimo, o contato com a obra tenha sido superficialmente pessoal ou perigosamente técnico. Ainda, no julgamento, qualquer verdade não pode ser tida como absoluta: trata-se, afinal, da tentativa de racionalização técnica de emoções, o que é particular, sim, mas que pode encontrar identificação.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

A energia protetora

Entre Realidades (disponível na Netflix), dessa forma, parte do princípio da normalidade para ir desmoronando o mundo ao redor de sua protagonista, interpretada por Alison Brie. Enquanto, inicialmente, o roteiro (o primeiro com participação de Brie) atém-se aparentemente às relações casuais, a direção de Jeff Baena (de A Comédia dos Pecados, 2017) já insere elementos que flertam com o surrealismo. Seja com Sarah (Brie) cortando com uma tesoura um tecido azul que antes era o céu, seja ao retornar para esse tecido (ou seria o céu?) ao expor o título do filme, há um cuidado quase melancólico na condução das imagens.

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O roteiro, inclusive, que é coescrito por Baena, parece consciente de sua progressiva estranheza. Não há exageros em suas exposições iniciais, como quando ao indicar a expressão de Joan (Molly Shannon) reparando a passagem de um cavalo na rua (algo que se explica no último ato) e, especialmente, ao construir diálogos que ficam entre o misterioso e o descartável – como a conversa sobre árvore genealógica que, em um primeiro contato, pode parecer totalmente inocente.

Existe um cuidado no desenvolvimento de Sarah que talvez passe despercebido em algum ponto, por mais que esteja ali em primeiro plano. Um desses pontos chama a atenção por distanciar, de fato, os pensamentos mais inusitados da protagonista de uma provável doença mental: ao passo que ela chega à conclusão que pode ser a própria avó (ou um clone dela), sua série favorita – e martelada com destaque várias vezes durante os 103 minutos do filme – é chamada de Purgatório. Sendo este, biblicamente, algo como o estado e o processo de purificação ou castigo temporário em que as almas daqueles que morrem em estado de graça são preparadas para o Reino dos Céus, tudo parece convergir para um universo que transcende a natureza física das coisas.

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E não é só: Brie e Baena são tão cuidadosos na intromissão da saúde mental de Sarah que, em certo ponto, deixam claro que ela tem plena consciência de que não é portadora de depressão, numerando em 1 (dentro de uma escala que vai até 10) o quanto se sente deprimida; no mesmo ponto, o roteiro é claro ao fomentar a ansiedade da personagem, que se diz em nível máximo. Junto à aflição da doença, há uma crítica implícita e explícita ao julgamento alheio, mas sempre com uma espécie de nuvem protetora. Por sinal, se a personagem surge nua, durante um devaneio, em seu local de trabalho, Joan toma a iniciativa de mandar fechar a loja para que a amiga não seja, justamente, julgada. Aquela irlandesa da África ocidental apresenta-se, de repente, como um anjo que compreende a via sacra de Sarah e a aninha em um tecido que – como dito por uma taróloga (Mary Apick) – teria energia protetora.

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Sempre foi o céu

Mas talvez nada funcionasse sem Brie. A atriz, além de carismática, compreende a sua difícil função de fundir a inocência de não ter um passado certo, a angústia de não entender seu lugar no mundo e a consciência da necessidade de se colocar como quem se é. Ainda, pode ser imprescindível reparar o quanto tanto o roteiro quanto a direção jamais menospreza o ofício dos profissionais da mente, colocando o psiquiatra, Ethan (Jay Duplass) como um homem que compreende a mente de Sarah por mais que seja um cético – e, aqui, ela mesma se diz cética, o que só alimenta a sua verdade.

É fato, também, o quanto a trilha sonora da dupla Josiah Steinbrick (em seu primeiro trabalho para um longa-metragem) e Jeremy Zuckerman (de A Leading Man) parece interessada em indicar caminhos alienígenas com suas linhas digitais que referenciam as composições feitas para ficções científicas de décadas passadas e, assim, remetem ao universo da avó de Sarah. Ao mesmo tempo, os compositores criam um laço inocente e tranquilo quando a personagem está sozinha e, de certa forma, em paz, ratificando o quanto o purgatório da vida dela é a sentença dada pela polifonia perturbadora do olhar externo.

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Entre Realidades, além de tudo, também traz uma reflexão freudiana sobre a vida – a partir do sexo ou não. Ao unir a composição que remete a uma sci-fi, os conceitos bíblicos inerentes e todo o cuidado sobre a mente, o filme mostra-se como um pequeno ensaio sobre o quanto é necessário aceitar a morte (a certeza desta) para suportar a vida – algo exatamente freudiano. O final é o que há de mais fantástico (em mais de um sentido): a abdução, enfim, é uma passagem. Como a simbologia do cavalo está associada ao transporte da alma para o mundo dos mortos, Willow (a égua) tem sua função essencial: com passado e presente resolvidos, Sarah (ou ela como sua própria avó) parte do purgatório, de um mundo pronto para jogar pedras no desconhecido.

Baena, enfim, encerra seu filme – híbrido da delicadeza e metafísica de Spike Jonze com o surrealismo de Leos Carax – com o céu azul, limpo e claro. Parece esperançoso de que a vida da personagem de Brie seja uma metáfora para que possamos olhar para o diferente com mais compaixão, com mais empatia, e que, assim, no fim de tudo, possamos estar tranquilos sobre a não existência de verdades absolutas na união entre emoção e racionalidade, sobre a possibilidade de a vida valer a pena e sobre o quão complicado é ver o mundo como o próprio purgatório.

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