Crítica | Coringa é pretensioso e cinema que raramente se vê
Por Sihan Felix • Editado por Jones Oliveira | •
No início de Coringa, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) está se maquiando enquanto o áudio de notícias sobre crimes toma conta daquela apresentação. Em close, a personagem de Phoenix esboça um sorriso forçado e segura com os dedos os músculos do rosto, alargando uma expressão de felicidade. Na sequência, ao mesmo tempo em que solta o sorriso e retorna ao seu sentimento de deslocamento do mundo, ele deixa rolar uma lágrima, que desce enlameada pela maquiagem.
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Esse ponto, que talvez não dure nem dois minutos, estabelece uma relação já muito íntima entre a brutalidade do mundo (por meio do áudio) e a crueldade de uma condição particular que é invisibilizada pelo todo (por meio do visual do próprio protagonista), chegando ao ponto de, mais à frente, Arthur afirmar sobre o quanto a sociedade espera que as pessoas com alguma deficiência ajam como se não as tivessem. É uma abertura que não somente apresenta o personagem, mas sintetiza a essência de sua existência; é tudo aquilo que o transformará em um ser inteiro. Ou melhor: tudo aquilo no qual ele já foi transformado sendo exposto sem que ele mesmo ainda saiba. É o ovo da serpente sendo rompido de fora para dentro.
Quem é aquele vilão?
A partir de então, o roteiro de Todd Phillips (de Cães de Guerra) e Scott Silver (de O Vencedor) inicia uma exploração mais didática (no melhor sentido da palavra) sobre o rompimento da casca desse ovo. Isso é tão bem explorado que, simultaneamente, existe a possibilidade de sentir empatia por um homem claramente com problemas (como revelado na dita abertura) quando ele é espancado por um grupo de adolescentes e perceber que há também o obstáculo de segurar esse sentimento pelo simples fato de saber que se trata, afinal de contas, de um vilão.
Nasce a primeira discussão extrafilme: Quem é aquele vilão? Claro que é o Coringa, o arqui-inimigo do Batman, alguém que já marca presença no imaginário popular. Mas quem é aquela pessoa de fato? A sensação maniqueísta de julgamento raso é esfacelada pelo texto com uma facilidade desconcertante. Por outro lado, é na direção do próprio Phillips que Coringa encontra com ainda mais propriedade sua veia dramática: Ao tratar um sujeito mentalmente doente com intimidade (são closes e mais closes extraindo o que há de mais particular das emoções de Arthur), o diretor também constrói uma relação de distanciamento pessoal ao conceber tantos planos em contra-plongée (filmados de baixo para cima). Essa relação confere uma proximidade quase que caótica, colocando o aparentemente frágil personagem em uma posição de superioridade.
Se esse tipo de construção pode inserir um distanciamento afetivo entre público e protagonista – como se aquele homem estivesse acima da verdade, muito além da altura dos olhos –, o todo é consciente em não deixar que essa distância elimine a identificação. Ao fazer com que o primeiro espancamento sofrido por Arthur aconteça em meio ao lixo e conferir, dessa forma, uma aparente lamentação sobre a maldade para com aquele palhaço triste (um clichê clássico e bem explorado), ele (Arthur) também é entregue à metáfora dos ratos gigantes que assolam Gotham. A direção de arte de Laura Ballinger (de O Rei do Show) é precisa ao unir o roteiro e a visão estética da direção, mantendo a dubiedade sem enterrar a empatia e sem engrandecer ou justificar as ações do vilão.
Claro que é uma construção subjetiva. E é justamente na subjetividade que Coringa cresce ainda mais. Por essa perspectiva, todo o visual é de muita elegância, produzindo metáforas certeiras sem a necessidade de pegar na mão do espectador e indicar o caminho ou ceder explicações. Há um respeito quase que religioso ao fato de que a experiência de assistir a um filme é pessoal.
As escadarias da glória e da perdição
Nesse sentido, Phillips idealiza as escadarias como figuras dramáticas de ascensão e queda: se a um momento Arthur comete seus primeiros assassinatos e, logo em seguida, foge subindo uma dessas escadarias, é em sua descoberta – em sua autorrevelação – como quem ele é (ou em quem ele foi transformado) que ele finalmente desce. E não é uma descida qualquer: ele dança em um slow motion épico, com direito a poças de água sendo pisadas com prazer, sem medo de ser feliz; com a edição de Jeff Groth (também de Cães de Guerra) aproveitando o ritmo com um prazer claro e hipnotizante; com a composição musical da islandesa Hildur Guðnadóttir marcando esse nascimento e, pela primeira vez, soltando-se em melodia e harmonia. Enfim, o ovo da serpente está aberto e ele (o Coringa), ao fim de todo o tom épico, foge (novamente), mas descendo, correndo de uma dupla de policiais em uma quebra de expectativa que, novamente, aterra qualquer heroísmo.
É possível, ainda em se tratando das escadarias, fazer um paralelo com Rocky: Um Lutador (de John G. Avildsen, 1976). Isso porque, enquanto o triunfo de se libertar em si mesmo do Coringa é revelado na descida – em uma subjetiva decadência moral e social –, Rocky, em uma de suas cenas mais icônicas, sobe a escadaria do Museu de Arte da Filadélfia e se encontra livre e pronto para ser, definitivamente, quem ele é. As comparações técnicas são tão antagônicas quanto: em oposição à claridade aberta, à liberdade visual e à iluminação aparentemente natural do filme protagonizado por Sylvester Stallone, Coringa expõe essa manifestação em um lugar onde a luz em último plano contorna o personagem título – graças à direção de fotografia minuciosa de Lawrence Sher (outro parceiro de Phillips em Cães de Guerra) – e que é ladeado por paredes (em um aprisionamento).
Permanecendo nessa análise de opostos, o Coringa de Phillips é moldado para a violência a partir de sua aparente aversão à esta, o que é demonstrado especialmente quando, ao atirar pela primeira vez em sua casa, Arthur assusta-se e, desesperado, aumenta o volume da televisão para esconder o que aconteceu de Penny (então sua mãe, interpretada por Frances Conroy). Do outro lado da cidade, o pequeno Bruce acabaria, mais tarde e de acordo com a mitologia do próprio herói, desenvolvendo um medo de morcegos. Se de um lado Arthur entenderia que aliar-se ao seu próprio medo é a ferramenta ideal para começar a rastejar para fora do ovo, do outro a fobia dá à luz o Batman.
O que precisa estar sempre claro
É verdade que há questões que podem causar preocupação e elas dizem respeito a aspectos do macro. Há dois pontos-chaves que explicitam isso: o primeiro é a utilização transparente de um transtorno mental como origem de um personagem essencialmente violento e, aliada a isso – ou principalmente –, a fundamentação de toda a transformação ser mais por meio de bases psiquiátricas, quase que subestimando os próprios caminhos sociais já cedidos pelo filme. Essa forma de expressar a força que uma mente doente pode exercer na formação de alguém é clara em uma conversa de Arthur com a psiquiatra do Asilo Arkham (vivida por April Grace), quando seu decrescente controle é associado à falta de remédios por cortes do Governo. Esse declínio do seu equilíbrio acaba por ser associado à descoberta de um autoconhecimento erguido pelo afastamento da medicina, o que é uma conclusão complicada dada a crescente alteração da sociedade extrafilme por meio dos mais variados problemas mentais.
O segundo ponto parte de uma premissa de Platão: “Tente mover o mundo – o primeiro passo será mover a si mesmo.” É fato que, para existir um início de uma revolução, há de existir um agente revolucionário. Há vários exemplos históricos – inclusive religiosos. Por outro lado, a sugestão em Coringa de que o caos é instalado por meio de uma atitude caótica pode ser um tanto quanto precipitada, dado o momento em que o mundo necessita de mais e mais pacíficos e ajuizados diálogos.
Não que o filme legitime quaisquer atitudes. Cinema é arte e, como tal, existe também como provocação, como meio para se pensar. Para outro filósofo grego, Aristóteles, “a arte imita a vida”. O problema é que, em um mundo necessitado de juízo e de consciência, o risco do contrário, de a vida imitar a arte, pode existir (ao menos minimamente). O movimento que Phillips dá com seu Coringa é incisivo: move-se e, a partir disso, passa a aguardar o mover-se do mundo. Um filme, quando chega ao cinema, deixa de ser do diretor, da produção ou dos membros da equipe e passa a ser do público. Cada cabeça uma sentença... e, apesar de não ter qualquer obrigação de uniformizar sua arte a ponto de evitar interpretações que corroborem com o caos e incentivem a ele, há de se ter alguma responsabilidade – sobretudo por se tratar de uma origem particular que não pode ser vista como representação do todo (o que precisa estar sempre claro).
Em meio às margens para essas questões, Coringa pode, sem dúvida, ser lido como o Taxi Driver: Motorista de Táxi (de Martin Scorsese, 1976) de sua época. Arthur Fleck e Travis Bickle (Robert De Niro no filme de Scorsese) são homens maltratados pelo meio e socialmente marginalizados. Esse paralelo só é desmedido quanto ao tratamento de trauma de guerra e crítica à Guerra do Vietnã, o que transforma Travis e aquele filme da década de 1970 – que, inclusive, perdeu o Oscar para Rocky: Um Lutador – em uma crítica mais clara a um todo de sua época.
Essa relação de voz particular e voz do todo é nítida quando, ao ser entrevistado por Murray Franklin (o mesmo De Niro), Arthur (já apresentado como Coringa) compreende como certo – em sua mente já descontrolada (equilibrada para ele) – atirar no apresentador. O fato, que em muito lembra a velocidade e naturalidade que a morte sempre encontra em outro filme de Scorsese, Os Infiltrados (de 2006), dá respaldo à condição de vilão do personagem, mas sempre em uma forma individual – nesse caso, de vingança ou, minimizando, de revide.
O circo é do palhaço
Se as ações intimistas conseguem alcançar grandeza e ir além do já ótimo trabalho da direção é por causa do trabalho de Phoenix. O ator, como sempre transparecendo uma entrega sobre-humana, cede tantas camadas quanto poderiam ser possíveis. Sua risada efetivamente doentia transgrede qualquer sensação de humor. Há, nas gargalhadas, uma dor tão implícita e uma vergonha tão poderosa que uma sensação de nervosismo pode desconcertar o público. Aliás, ver a atuação de Phoenix em Coringa é de causar uma angústia quase dolorosa: sua boca sorrindo ao mesmo tempo em que os olhos só passam tristeza, suas danças expansivas aliadas à sua personalidade inicialmente introspectiva... é tudo tão poderoso – com a direção de Phillips e a edição de Groth sabendo disso – que cada cena parece estendida ao seu máximo, como para aproveitar cada expressão, gesto e decisão criativa do ator, sem jamais perder o ritmo.
Quando, próximo ao fim, o Coringa percebe-se finalmente idolatrado por uma multidão, existe ali uma consciência de um artista que, finalmente, encontrou o seu lugar no mundo. E um artista que recebe reconhecimento dificilmente se desvia para outro caminho. O palhaço passa a comandar o circo. A Caixa de Pandora – grega como Platão e Aristóteles – está aberta e todos os males estão libertos. A esperança, que mitologicamente fica trancafiada, até então é muito nova para o combate. Mas ela nasce ali, com a morte de Thomas e Martha Wayne. O fim da origem do vilão é o princípio do nascimento do herói.
Coringa, enfim, é cinema que raramente se vê. Pretensioso, mas com todas as pretensões atendidas; provocativo, mas sem mastigar as provocações; de um poder visual único; de uma estrutura absolutamente hipnótica; e, até mesmo com suas perigosas decisões causando discussões que podem e devem ir para muito além do fim dos créditos, o filme deve marcar uma nova era em seu próprio subgênero. A partir daqui, não se trata de ser um bom ou excelente filme ou um entretenimento satisfatório; a necessidade passa a ser de poder narrativo, de linguagem e de relevância artística. É questão de sorrir com uma lágrima enlameada pela maquiagem ou pela vida descendo. É presenciar uma obra que tem o poder de transformar pelo conteúdo e pela forma.