Crítica | Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald é um dragão adormecido
Por Sihan Felix | •
‘Adaptações sempre geram polêmicas e embates intermináveis sobre a obra original e sua transposição para a tela do cinema. Não é fácil, claro, agradar a incontáveis fãs, uma vez que cada um tem uma história de vida diferente e, portanto, constroem memórias e mundos próprios ao primeiro contato com uma obra de gênese.’
Deve (ou deveria) ser, nesse sentido, inquestionável o talento de J.K. Rowling como escritora e argumentista. Suas criações têm vida própria, possuem correlações diretas e efetivas com o mundo real, guiaram e continuam a guiar uma imensidão de leitores e, ainda, seguem crescendo e se desenvolvendo junto a quem a acompanha. Seus personagens são quase como se fossem gente da família ou amigos muito próximos que viajaram para longe e, felizmente, consegue-se ter contato com suas histórias, seus anseios, suas dúvidas, os perigos pelos quais passam, seus casos de amor. Um leitor do mundo bruxo de Rowling é, também, um confidente.
Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers.
Duas vertentes: uma é histórica, a outra causa instabilidade
Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald não é uma obra adaptada de fato. Ela é uma sequência original, criada diretamente para o cinema. E essa originalidade tem duas vertentes opostas.
A primeira dá a oportunidade de o público reagir junto, em massa, a cada descoberta ou surpresa. Algumas dessas reações são nostálgicas e emocionam de verdade, como o surgimento de Hogwarts nas montanhas escocesas – capaz de fazer uma sala de cinema inteira suspirar e até aplaudir. Ou, até mesmo, a revelação final, que tem um poder enorme de causar o maior furor entre os espectadores. É, praticamente, como um livro audiovisual sendo desvendado em conjunto, em pouco mais de duas horas. Isso é histórico e precisa ser levado em consideração.
A segunda e oposta vertente é, infelizmente, dolorida: por mais que Rowling seja uma escritora brilhante, seu texto como roteirista original parece tropeçar na forma. Há uma pegada reconhecível, seu carinho com os personagens está presente – e ela sabe alimentar o seu público como ninguém –, mas o ritmo é de uma inconstância enorme.
Os motivos da instabilidade podem ser vários, mas dois parecem despontar com mais claridade: a inexperiência da escritora como roteirista de fato e a mira nas sequências. Enquanto o filme em questão é o primeiro no qual Rowling trabalhou sem ter uma obra base (como o foi com o antecessor), já foram anunciados mais três filmes derivados desse mundo bruxo que antecede o nascimento de Harry Potter.
Dito isso, Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald assemelha-se bastante a um grandioso trailer. Tanto que o gatilho que desperta em Newt Scamander (Eddie Redmayne) o ímpeto de lutar por uma causa enfim só surge no terceiro ato do filme. Toda a ação anterior pode dar a impressão de ter sido em vão, em um passeio cheio de magia e flashbacks que fazem brilhar os olhos e enfeitiçam as mentes dos fãs mais apaixonados, mas que pouco acrescentam à narrativa – algo que só acontece pontualmente nos filmes adaptados da obra de Rowling.
Seu nome é Adolf Gellert Hitler Grindelwald
Por outro lado, o filme é tecnicamente impecável. A pesquisa realizada para a construção do figurino, por exemplo, é de uma qualidade irretocável (assim como o foi em Animais Fantásticos e Onde Habitam). Nesse sentido, é incrível como o tecido e o corte escolhidos para vestir os personagens dizem muito sobre eles: Enquanto Newt veste um típico casaco inglês tweed, dando-lhe peso aos ombros e reforçando a sua retração social – tanto que, em um dos poucos momentos em que ele retira o casaco, ganha instantaneamente uma aura de super-herói (antes de mergulhar atrás do cavalo-do-lago) –, Gellert Grindelwald (Johnny Depp) usa um sobretudo que instantaneamente remete ao militarismo nazista.
Assim, se o figurino revela muito das personalidades, ao mesmo tempo reflete a época real que antecede a Segunda Guerra Mundial. Nessa relação com o social, fica nítida a tentativa de construir uma história sobre a importância de se ter um lado em tempos de mão-dupla, quando subir no muro é a opção menos... grifinoriana. Em certo ponto, inclusive, o irmão de Newt, Teseu (Callum Turner), fala ao protagonista da necessidade de se tomar um lado – lado que só viria a ser claramente tomado após o já dito gatilho no terceiro ato do filme.
Dessa forma, instalam-se não somente alegorias sobre a polarização que tem tomado conta do planeta nos últimos anos (polarização que, às vezes, é bem-vinda para a manutenção de uma democracia saudável), mas também uma realidade própria dentro do universo bruxo sobre a humanidade. Se o discurso de Grindelwald em muito pode lembrar o ariano – com um toque óbvio de magia –, as viagens entre países são bem específicas em referenciar justamente a Grande Guerra que adentrou a década de 1940 (sendo Áustria e França polos dos mais importantes na trajetória do exército de Hitler). Além disso, basta perceber as alusões visuais feitas pelo vilão para fazer ligação direta especialmente às bombas lançadas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki.
Draco Dormiens Nunquam Titillandus
É por ter tanto a dizer que Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald merecia uma explanação como somente Rowling poderia fazer... na literatura. Ao ir sem escalas para o cinema, fica a impressão de que a escritora deixou muito de si pelo caminho. Porque não se adapta uma artista que é específica de outro mundo. Adapta-se, claro, a obra.
De qualquer forma, trata-se de um primeiro trabalho da criadora de um universo tão fantasioso e, ao mesmo tempo, tão real. Nesse sentido, é muito provável que, com a experiência, os filmes seguintes ganhem corpo, ritmo e se transformem em faróis de um entretenimento competente carregado de conteúdo. Tão iluminados quanto a primeira criatura que surge brilhando em Paris, a cidade luz, durante o filme: o Zouwu (um dragão mencionado na literatura chinesa antiga).
Draco Dormiens Nunquam Titillandus. Ou Nunca Faça Cócegas em um Dragão Adormecido. Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald pode ser somente cócegas do que estar por vir. Para o bem do cinema, que assim seja.