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Crítica | A Mata Negra é uma sanguinolenta declaração de amor pelo gênero

Por| 17 de Dezembro de 2018 às 11h11

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Elo Company
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No ano histórico de 1964, José Mojica Marins – expoente do terror brasileiro – lançava um dos filmes de gênero mais comentados do cinema nacional: À Meia Noite Levarei Sua Alma. O criador do icônico Zé do Caixão estaria à frente de outras produções que solidificariam sua maestria: Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), Exorcismo Negro (1974), A Encarnação do Demônio (1981)... são mais de 40 obras, entre curtas, longas e segmentos, que fazem dele um cineasta único no mundo e de uma importância sem tamanho para o cinema do Brasil.

E esse cinema de Mojica é de uma resistência absoluta: Se as produções eram vítimas constantes de censura à época dos seus primeiros filmes, não deve ser difícil imaginar o quão marginalizado era o terror. Enquanto, ainda hoje, o gênero é vítima de preconceitos – até mesmo por parte da crítica, que cria ou utiliza denominações como “pós-terror”, desqualificando diversos exemplares (assunto complexo para uma matéria à parte) –, surgem e se solidificam aventureiros corajosos que têm como plano de carreira justamente o terror. E os frutos estão por aí: Nervo Craniano Zero (de Paulo Biscaia Filho, 2012), O Animal Cordial (de Gabriela Amaral, 2017), As Boas Maneiras (de Marco Dutra, Juliana Rojas, 2017), Morto Não Fala (de Dennison Ramalho, 2018), O Nó do Diabo (de Ian Abé, Gabriel Martins, Ramon Porto Mota e Jhésus Tribuzi, 2018)...; além de diversos jovens cineastas promissores que surgem em festivais com curtas-metragens que transparecem uma paixão que é necessária ao terror. O cinema baiano talvez esteja um passo à frente nesse ponto.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!

O Diabinho na Garrafa e o facehugger galináceo

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Rodrigo Aragão (capixaba de Guarapari), responsável por A Mata Negra, é a maior resistência atual nesse sentido. Se há 10 anos ele lançava o seu primeiro filme (Mangue Negro) de forma completamente independente, hoje ele é o nome mais conhecido dentro de um gênero que ele tem papel fundamental na afirmação.

Tendo sido financiado com apoio do Fundo Setorial do Audiovisual, A Mata Negra é esteticamente mais complexo do que os filmes anteriores do diretor, mas jamais se distancia deles na essência. Dessa maneira, por mais que existam tomadas aéreas e construções imagéticas que vão da simplicidade de um voo de drone a planos-sequências (aqueles sem cortes) complexos, tudo está recheado pela habilidade de Aragão em ter um cinema próprio, com raízes bem brasileiras, avesso a ser um espelho hollywoodiano.

Construindo toda a base da história através do folclore nacional, o diretor (e também roteirista) insere elementos dos mais variados, que vão das garrafadas que fazem referência à lenda d’O Diabinho da Garrafa (também conhecida como Famaliá, Diabinho Familiar, Cramulhão, ou Capeta da Garrafa) ao próprio Livro de São Cipriano (que trouxe essa lenda do Famaliá de Portugal para o Brasil). O ocultismo do Capeta da Garrafa, que envolve um ovo de galinha a ser fecundado pelo próprio demônio, serve como base para toda a trama, desaguando em um terceiro ato que é, além de sanguinolento, de uma consciência para a diversão do público que beira a genialidade. Destaque para a jovem galinha possuída que ataca os rostos dos personagens e parece uma referência (cômica) ao facehugger de Alien (de Ridley Scott, 1979).

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Do ovo à liberação de demônios

Não bastasse, a simbologia universal de nascimento e criação – que encontra no ovo fecundado a sua máxima exposição – conduz Clara (Carol Aragão – filha de Rodrigo) a descobertas e redescobertas que vão do mais íntimo às críticas sociais e políticas sempre presentes na obra do diretor.

Enquanto a moça (Clara), protegida por Pai Pedro (Markus Konká), vive à mercê da mata, a impressão é a de que a sua inocência está preservada, envolvida por todos os lados por uma vegetação densa. Mas, quando precisa ir vender as garrafadas na feira pela primeira vez, indicando, através de um breve diálogo, que é uma menina forte e que sabe se cuidar, inicia-se um desabrochar muito delicado: sai de cena a menina e começa a surgir a mulher, capaz de conhecer outras pessoas, apaixonar-se. Ela “sangra” para fora da mata, anunciando o tanto de horror que surgiria através dela mesma a partir do segundo ato.

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Do mesmo modo, o Pastor Francisco das Graças (Jackson Antunes) surge como uma ameaça externa: ele adentra a mata, ferindo-a. Sua atitude é praticamente uma reflexão não somente sobre a manipulação que alguns religiosos exercem sobre seus seguidores – isso está na atitude em si, na primeira camada –, mas uma alusão passível de interpretação sobre estupro. Clara, que havia deixado a mata e se revelado ao mundo, agora é uma moça perseguida por ter “liberado demônios”.

Único no mundo

Ainda, Rodrigo Aragão não se exime de comentários políticos, dando tons proféticos à personagem de Antunes, que, a um momento, fala sobre ser presidente. É, de fato, de uma coragem enorme considerar a política dentro de uma obra de um gênero que vai se solidificando a duras penas. Dado o momento, a coragem pode soar maior. Por outro lado, o terror nunca deixou de ser das vertentes mais corajosas e subversivas dentro das artes – vide os filmes citados nos dois parágrafos introdutórios e aqueles realizados por Mojica de 1964 a 1985.

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Aragão, assim, com A Mata Negra, permanece felizmente em sua zona de conforto, que é o lugar onde o cinema brasileiro precisa dele e onde ele é único. E, sem ser ufanista, ele é único no mundo.