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Os sistemas digitais não vão superar o cérebro humano, diz Miguel Nicolelis

Por| 04 de Dezembro de 2020 às 18h20

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No final de novembro, a equipe do Canaltech participou de uma conversa com o neurocientista Miguel Nicolelis, professor da Universidade Duke, nos Estados Unidos, que está lançando o livro O Verdadeiro Criador de Tudo, em que apresenta uma teoria de como o cérebro humano evoluiu para se tornar um computador orgânico sem rival no universo conhecido. Trata-se, basicamente, de uma história de aventura sobre o papel central do cérebro na criação de nossa concepção do universo. E foi sobre o livro em si que a conversa teve início.

No livro, que completa a trilogia iniciada em 2011 com o lançamento de Muito Além do Nosso Eu (Companhia das Letras) e continuada por Made in Macaíba, publicado em 2016 pela Editora Planeta, Nicolelis traz à tona os perigos para a humanidade de não reconhecer a importância do papel do cérebro."Eu escrevi esse livro porque eu senti que depois de 38 anos registrando neurônios, traçando conexões neurais, falando com os caras mais loucos do planeta sobre os detalhes mais ínfimos da microestrutura do cérebro, estava na hora de tirar o cérebro do laboratório e trazê-lo para o mundo que ele construiu para nós e lhe conceder todos os louros pela criação final que ele nos ofertou", afirma o autor.

Durante a conversa, Nicolelis conta que o sistema nervoso funciona em múltiplos níveis hierárquicos que vão desde o nível atômico até o nível sistêmico. "Em todos esses níveis, há um número incalculável de parâmetros que precisam ser atualizados em sincronia a cada um desses níveis e os resultados de cada um deles precisam ser transmitidos do nível atômico ao sistêmico e do nível sistêmico ao atômico. Quando se coloca isso junto, se tem um problema que é não computacional, não pode ser reduzido a nenhum tipo de algoritmo e não pode ser reduzido, simplesmente, a uma simulação de processo analógico, porque ele é realizado, analogicamente, pela massa orgânica do cérebro", afirma o neurocientista.

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Segundo Nicolelis, o cérebro computa com a sua massa, ou seja: as sinapses não só liberam neurotransmissores para fazer a transmissão de potencial de ação. "Elas mudam a sua configuração. As proteínas que formam a membrana pré sináptica mudam sua configuração terciária e quaternária no momento dessa transmissão. A computação se dá como uma régua de cálculo antiga. É uma orquestra sinfônica que, a cada nota produzida, reconfigura fisicamente os instrumentos da orquestra", acrescenta. E para o neurocientista, o universo que nós conhecemos é um universo humano, ou seja: é a tradução do que existe aqui fora de acordo com os limites da mente humana.

Os sistemas digitais vão superar o cérebro humano?

Nicolelis é direto ao receber tal questão: "A resposta é não. Como eu falo no meu livro, os sistemas biológicos são analógicos, e esses sistemas têm uma complexidade muito maior do que os sistemas digitais”. No entanto, ele ressalta que essa sequer é a pergunta que precisa ser feita. Ele aproveita a ocasião para levantar uma outra questão: "A nossa imersão contínua e obsessiva nos sistemas digitais vão modificar a nossa mente? A resposta é sim", diz o neurocientista.

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"A cada grande transformação educacional tecnológica, você nota modificações relatadas nos hábitos comportamentais. Essa imersão não vai provar que essas máquinas são superiores a nós, mas tende a informar o cérebro: ‘se o mundo está virando essa lógica reduzida, para eu ter as recompensas que esse mundo oferece, eu tenho que me tornar uma dessas máquinas’. E é isso que estamos notando. O cérebro é um camaleão que muda constantemente a sua configuração e consequentemente a sua função a cada encontro com o mundo exterior", observa.

Sob sua perspectiva, em cada advento tecnológico, existem alterações do funcionamento cognitivo e da nossa forma de interagir, mas nada na história da humanidade é comparado com o nosso mergulho obsessivo compulsivo na lógica digital atual. Para ele, o advento das tecnologias de comunicação, a capacidade de formar grupos sociais se multiplicou de forma exponencial a ponto de hoje se poder pensar na possibilidade da existência de uma brainet (que parte do princípio de cérebros atuarem simultaneamente para realizar um objetivo motor único) que envolva 8 bilhões de seres humanos.

"Oito bilhões de mentes sincronizadas instantaneamente através de um vírus informacional que poderia ser disseminado na velocidade da luz por um meio de comunicação que conectaria o cérebro de todos nós diretamente. Esse é o limite da ideia, mas esse mecanismo de sincronização das mentes humanas existe desde que nós descemos das árvores e fomos caminhar pelas savanas africanas em busca de um propósito e de um significado da vida para nunca encontrar, evidentemente, porque ele não existe, mas criamos toda a sorte de intermediários para tentar explicar essa busca pelo não existente. Eu não excluo a ciência desse mecanismo de geração de abstração porque ela vem da mente humana", reflete o neurocientista.

Inteligência artificial

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Segundo o neurocientista, os algoritmos de inteligência artificial só conseguem nos superar em domínios restritos, com regras estabelecidas, levando em conta dados passados que são usados para fazer previsões. “O que existe, na realidade, é um enorme desconhecimento do que é a inteligência artificial cujo nome já é impróprio, porque inteligência é algo que emerge da matéria orgânica. Não existe inteligência binária, porque inteligência não é programada. Esse debate está contaminado por outras agendas econômicas, políticas, a tentativa de diminuir a contribuição do ser humano no mundo moderno, a tentativa de mostrar que nós somos só um pedaço de matéria orgânica que não vai ter chance de competir com os bytes e bits e na vasta maioria dos casos, é pura balela”.

Com isso em mente, Nicolelis usa a área da saúde para exemplificar o seu raciocínio: “Não teria uma eficiência aceitável de um sistema de big data na porta de um hospital para decidir se uma pessoa que passa na triagem precisa entrar em uma emergência ou não. Ia morrer muita gente com o big data, porque nenhum sistema computacional tem o olho clínico de um médico com experiência que olha o paciente e decide se vai entrar na emergência ou não”.

O especialista considera isso como um culto, uma espécie de religião dos tempos modernos, e que não tem embasamento. Ele cita o caso do Deep Blue, um supercomputador e um software criados pela IBM especialmente para jogar xadrez, que chegou a vencer Garry Kasparov, ex-campeão mundial de xadrez. “É óbvio. O supercomputador tem a chance de simular milhões de cenários na velocidade da luz. Eu não estou impressionado, porque são regras fixas, regras computáveis. Mas a vasta maioria da condição humana não é computável, não é reduzível a algoritmos que podem ser simulados no computador. E não tem máquina alguma que consiga simular esses processos analógicos”, dispara.

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No entanto, questionado se a inteligência artificial pode auxiliar no combate contra a COVID-19, Nicolelis afirma: “Quando se usa o machine learning/deep learning e se tem bancos de dados gigantescos como nós temos hoje, e se precisa minerar esses bancos de dados, é evidente que esses sistemas de álgebra linear e modelagem multivariada são úteis. Eles só não são úteis para fazer com que a gente tome decisões. As decisões são tomadas com aspectos múltiplos, além de dados: aspectos econômicos, políticos, filosóficos, ideológicos".

Miguel Nicolelis foi considerado pela Revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2009, e posteriormente foi considerado um dos 20 maiores cientistas pela revista de divulgação para leigos Scientific American. Além disso, foi o primeiro cientista a receber no mesmo ano dois prêmios dos Institutos Nacionais de Saúde estadunidenses e o primeiro brasileiro a ter um artigo publicado na capa da revista Science.

Ele atualmente lidera um grupo de pesquisadores da área de Neurociência na Universidade Duke, no campo de fisiologia de órgãos e sistemas, com o objetivo é integrar o cérebro humano com máquinas (neuropróteses ou interfaces cérebro-máquina). Suas pesquisas desenvolvem próteses neurais para a reabilitação de pacientes que sofrem de paralisia corporal. Nicolelis e sua equipe foram responsáveis pela descoberta de um sistema que possibilita a criação de braços robóticos controlados por meio de sinais cerebrais.