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O mistério sobre o estado físico do vidro, que intriga a humanidade há séculos

Por| 25 de Abril de 2020 às 12h00

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Pixabay
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O vidro é um mistério que intriga os cientistas há séculos. Isso porque, embora seja um material muito comum e esteja em quase tudo ao nosso redor, seu estado físico fica entre o sólido e o líquido. Suas moléculas não ficam ordenadas, como em um cristal, e nem “apertadas” de maneira organizada em algo sólido, a exemplo de uma barra de ferro, um bloco de concreto ou um pedaço de madeira. Elas simplesmente ficam exatamente como as de um líquido, mas em animação suspensa. Qual a razão de isso acontecer, já que o vidro, na verdade, se parece mais com um sólido, e não com um líquido? O que isso tem a ver com o conceito chamado de “vidro ideal”? E por que é tão importante? Bem, há várias pesquisas sobre o assunto, mas só recentemente, com a ajuda da tecnologia, é que estamos perto de realmente entender o vidro.

Mas, antes de seguirmos adiante neste texto, é preciso que uma coisa fique bem entendida: quando um líquido esfria, ele cristaliza em um padrão regular e repetitivo, a exemplo de quando a água congela a zero grau Celsius. Contudo, dependendo da mistura no fluido e da temperatura, as moléculas param de se mover e se contraem aos poucos, tornando sua consistência viscosa, até endurecer por completo. Esse processo natural é o que torna um vidro o que os pesquisadores chamam de sólido amorfo — um meio-termo entre o líquido e o sólido.

O "vidro ideal"

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Esse é um conceito que poderia explicar o “caminho” que uma substância leva de seu estado líquido ao sólido amorfo perfeito, ou o mais denso agrupamento aleatório de moléculas possível — o vidro ideal. Só tem um problema: pesquisadores acreditam que, para observar esse processo de forma natural, seriam necessários milhões de anos. Mas, com descobertas do passado aliadas a estudos recentes e às novas tecnologias, esses estudiosos podem nos dar alguma orientação para chegarmos às respostas definitivas.

Em primeiro lugar, era necessário saber se essa ideia do vidro ideal realmente se encaixa nos fenômenos naturais conhecidos. Em 1948, um jovem químico chamado Walter Kauzmann notou o que ficou conhecido como “Crise da Entropia”, um paradoxo que poderia, então, ser explicado pelo vidro ideal. Ele observou que, se você puder resfriar um líquido devagar o suficiente, suas moléculas precisam se mover por mais tempo, obrigando o fluido viscoso a buscar arranjos mais “apertados” e de menor energia.

Como a configuração não se parecia ou se aproximava à de um cristal, e nem de um sólido, Kauzmann percebeu um movimento de entropia, que, em seu momento final, tornou-se muito denso. Mas, ainda assim, o material resultante não tinha moléculas ordenadas como a de um cristal, e nem como a de um sólido. A redução de nível da desordem dos componentes foi atrelada então a uma determinada temperatura, e isso também revelou que o líquido, talvez, busque esse “rearranjo” até o que seria o vidro ideal — o que, como dissemos, levaria muito tempo para se formar de maneira natural, a ponto de o processo ser observado e documentado do início ao fim.

A conclusão, então, apoiada pelos estudos dos pesquisadores Julian Gibbs e Edmund DiMarzio, em 1958, é que, na “Temperatura de Kauzmann”, é possível observar as moléculas se movendo em blocos desordenados para se manterem assim nos menores espaços e combinações possíveis. Ou seja, o líquido, quando vai se tornando vidro, procura naturalmente pela situação do vidro ideal, mantendo sua “bagunça organizada” sem se combinar meticulosamente como um cristal ou se “apertar” em uma ordem suficiente para se tornar um sólido.

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O "vidro ultraestável"

Ao longo do tempo, cientistas passaram, então, a usar a tecnologia para tentar reproduzir artificialmente o tal do vidro ideal. Em 2007, Mark Ediger, químico da Universidade de Wisconsin, nos EUA, descobriu uma forma de chegar a um estado entre o vidro comum e o ideal, o chamado "vidro ultraestável". Usando a chamada deposição de vapor, Ediger e sua equipe lançaram moléculas, uma a uma, sobre a superfície, como se estivessem jogando Tetris, permitindo que cada molécula se acomodasse no seu encaixe mais confortável antes que a próxima fosse liberada. O resultado foi um material mais denso e estável, com menor desordem molecular do que todos os vidros vistos ao longo da história da humanidade.

Com isso, eles também observaram, na prática, a teoria de Phil Anderson, consagrado físico de matéria condensada e ganhador do Prêmio Nobel. Nos anos 1970, Anderson explicou que os vidros possuem pequenos aglomerados de moléculas que se movem de acordo com a troca de temperatura, justamente para manter sua “desorganização organizada” característica. Ou seja, quando uma molécula vai parando conforme a temperatura cai, ela possui um componente alternativo agrupado, que é capaz de passar por obstáculos para ocupar outro espaço e trocar calor — mantendo, assim, sua formação desordenada. Esses blocos foram chamados de “sistemas de dois níveis”, pois, quando um nível “se ajeita”, o outro pode se deslocar para manter a desordem.

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O âmbar e a inteligência artificial

Já em 2008, Miguel Ramos, físico especialista em vidro na Universidade Autônoma de Madri, na Espanha, obteve um pedaço de âmbar de 110 milhões de anos. Os arqueólogos que descobriram esse âmbar não encontraram as evidências que gostariam ali, mas, para Ramos, aquela amostra seria o mais próximo do que podemos conceber sobre um vidro ideal: um líquido que, talvez em busca de sua configuração mais densa possível, chegou a esse material, que continua com as características de um vidro e não pode ser considerado um sólido — estaria mais próximo do vidro ultraestável de Ediger.

Em experimentos paralelos, tanto Ramos quanto o cientista Frances Hellman, da Universidade da Califórnia, analisaram as propriedades de baixa temperatura do âmbar e da indometacina — um produto químico usado como um medicamento anti-inflamatório e que também tem características de um vidro ultraestável. Eles descobriram, em ambos os casos, que a capacidade de calor era muito menor do que o normal quando analisados próximo ao zero absoluto. Isso sugere que o vidro ultraestável possui menos sistemas de dois níveis. Então, aplicando o princípio da entropia e todos os estudos anteriores, o vidro ideal seria aquele sem esses sistemas de dois níveis.

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Recentemente, simulações de computador com o poder da inteligência artificial foram usadas para testar essas ideias — o processamento das máquinas anteriores não permitia isso. Em 2018, Ludovic Berthier, físico da Universidade de Montpellier, na França, encontrou um truque que permitiu acelerar os cálculos em um fator de um trilhão. Seu novo algoritmo escolhe duas partículas aleatoriamente e troca de posição.

Em um artigo que atualmente está sendo revisado por partes para ser publicado no periódico científico Physical Review Letters, Berthier, Scalliet, Reichman e mais dois coautores relataram que, quanto mais estável o vidro simulado está, menos sistemas de dois níveis ele possui. Como nas medições da capacidade de calor de Hellman e Ramos, as observações em computador sugerem que sistemas de dois níveis são a fonte da entropia do vidro: quanto menor o número desses estados alternativos, maior a estabilidade e a ordem de longo alcance de um sólido amorfo como o vidro ideal.

E agora?

Bem, os pesquisadores planejam fazer novos experimentos com âmbar, assim como com o vidro simulado e o fabricado em laboratório, na esperança de descobrir mais detalhes dos sistemas de dois níveis e aproximá-los ao suposto estado de vidro ideal. Os próprios cientistas admitem que talvez ainda não seja possível saber a resposta final que todos buscam — ao menos com as evidências, os experimentos, os estudos e as tecnologias atuais.

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Contudo, assim como em tudo na ciência, embora não tenhamos todas as explicações sobre como a natureza funciona, estudar, pesquisar e experimentar, em busca de respostas, é um processo que vale a pena, porque acaba trazendo outras perguntas revelantes no meio do caminho — e isso é o que move a busca por mais conhecimento sobre tudo que há ao nosso redor. E nós ficaremos de olho para sabermos quais serão os próximos passos nessa incessante curiosidade em torno do intrigante estado físico do vidro!

Fonte: Quanta Magazine, Discover Magazine