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Crítica | Dois Papas é um filme genial e cheio de charme

Por| 24 de Dezembro de 2019 às 15h00

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A postura de Fernando Meirelles (que dirige Dois Papas) é sempre muito sincera. Se Menino Maluquinho 2: A Aventura, seu primeiro filme (junto a Fabrizia Pinto), apesar de ter um roteiro esquecível, possui uma validade estilística muito clara – com sua visão infantil levada muito a sério –, Domésticas: O Filme (dirigido com Nando Olival) e Cidade de Deus (com Kátia Lund) revelam uma direção engajada na solidificação do universo daqueles filmes. Dessa maneira, por mais que se esteja distante socialmente dos fatos representados, é quase impossível não se sentir imerso nesses filmes. Esse fato fica muito claro em sua adaptação de Ensaio Sobre a Cegueira, que nos insere de modo tão intenso no texto epidêmico e metafórico de José Saramago que a assimilação pode ser perturbadora para o público.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Moldado por remorso

Pela perspectiva inicial, fica claro que o diretor brasileiro tem controle total na criação de mundos próprios. Seus filmes têm vida em si e por si, independente se estruturados em realidades ou em acontecimentos impossíveis (ou quase isso). É assim que ele dá vida a Dois Papas (produção original da Netflix disponível em seu catálogo), fundamentando um caso público com sua visão de unidade. Dessa forma, nem mesmo uma caminhada do então Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) junto ao seu sucessor (interpretado por Jonathan Pryce) no jardim de verão papal é algo solto: há sempre uma pincelada a mais que cede camadas – por mais que estas permaneçam em algum lugar da inconsciência do espectador.

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Nesse caso, o futuro Papa Francisco – então Jorge Mario Bergoglio – pede sua aposentadoria justamente em um jardim, tal qual o do Éden, de onde o deus bíblico expulsou o ser humano, fazendo-o lavrar a terra da qual havia sido formado (Gênesis 3:23). Esse pedido, a certo ponto, é revelado justamente a partir de um God's eye view, quando o espectador assume uma possível posição divina e enxerga tudo de cima.

Mas Meirelles, que dirige um roteiro de Anthony McCarten – que vem se tornando um especialista em adaptações chapas-brancas (vide A Teoria de Tudo, O Destino de uma Nação e Bohemian Rhapsody) –, demonstra ter noção total do texto, transformando-o em uma comédia e livrando-a um pouco do peso da realidade. Mas nem mesmo tirando o peso de uma abdicação que não ocorria há séculos o brasileiro consegue ser neutro. Inserindo sua visão política sem ressalvas em flashbacks pontuais, o diretor – auxiliado pela montagem do também brasileiro Fernando Stutz – guia a leveza branca de McCarten com uma intensa busca pela complexidade de um homem tido como santo pela Igreja ao assumir sua função política. Não por menos são repetidos os chamamentos homem-santo e Santo Padre com alguma frequência e, a partir dessa pretensa santidade, expostas as escolhas políticas por trás de um homem (ao menos no filme) moldado por remorso.

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E não deixa de ser uma visão, no final das contas, cristã. O versículo “[a]rrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus.” (Mateus 3:2) é a personificação da interpretação de Pryce. O olhar sempre misericordioso e cheio de bondade parece esconder a dor de um passado vexatório. É como se Judas Iscariotes tivesse se permitido viver em arrependimento, desconstruindo o beijo que trai o Cristo. A atuação de Pryce em cada ação é de uma profundidade tão efetiva que eleva tanto o texto – que, afinal, tem excelentes diálogos – quanto a própria intenção estrutural de Meirelles.

Hopkins, aliás, que é ofuscado por Pryce somente pela personalidade oposta da sua personagem, tem dos melhores timings cômicos em um filme de 2019, cedendo graça ao divisório Joseph Aloisius Ratzinger. É interessante como o roteiro de McCarten e o trabalho de Meirelles criam Ratzinger inicialmente como um político nato, revelando a proximidade da Igreja com a política de um jeito muito claro. Essa proximidade acaba por revelar quão frágil é a representação de um homem eleito por outros homens – que a maioria nem conhece – e quão distante é essa máquina política de uma real representação divina.

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A leveza da genialidade

Mas é tudo tão leve, com Ratzinger – alemão – fazendo piadas sem estar fazendo piadas de fato e com Bergoglio tão caloroso e empático quanto boa parte de nós – latinos – que Dois Papas tem, sim, sua absorção de forma muito fácil tanto junto aos católicos quanto a qualquer público. É um filme cheio de charme. E se construir uma obra que traz dois homens idosos em uma transição político-religiosa sem deixá-la cair na monotonia por pouco mais de duas horas já evidencia muita competência, fazê-la ter esse tal charme e, ainda, ser relevante e prazerosa de se assistir confirma a genialidade de um diretor que transita sem medo entre o cinema infantil, a distopia e as mazelas sociais.

É verdade que o Papa é argentino, mas, felizmente para nós, Meirelles é brasileiro – e parece muito contente em deixar explícita a vitória alemã sobre os hermanos em uma certa finalde 2014: na prorrogação.. tanto do jogo quanto do filme. Os filmes de Meirelles são mesmo, sem dúvida, e por mais que tenham ligações externas, universos muito premeditados e estruturados em si.