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Uma reflexão sobre a transexualidade e o tratamento de gêneros nas redes sociais

Por| 16 de Outubro de 2015 às 16h13

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Uma reflexão sobre a transexualidade e o tratamento de gêneros nas redes sociais
Uma reflexão sobre a transexualidade e o tratamento de gêneros nas redes sociais

Navegando pelo Facebook ou Instagram, talvez você já tenha visto alguma publicação com a hashtag #DoIHaveBoobsNow, ou ainda a #FreeTheNipple. Apesar de se tratarem de iniciativas diferentes, ambas focam na mesma questão: Mark Zuckerberg, qual o problema com os seios femininos? Por que os mamilos femininos são proibidos e dignos de censura, enquanto os masculinos são aceitos e permitidos nas redes sociais? E como ficam as trans ao publicarem fotos com o torso descoberto? Seus mamilos seriam vistos como masculinos — e, portanto, permitidos — ou, assim que a pessoa se identifica como uma mulher transexual ou travesti, seus seios passam automaticamente a sofrer a mesma censura dos demais mamilos femininos? Quem determina qual mamilo pode e qual não pode ser exibido nas redes sociais?

Trans o quê?

Bom, em primeiro lugar, é importante explicar o que é uma transexual e qual a diferença de uma mulher trans para uma travesti. A sexualidade humana é extremamente complexa e nem mesmo médicos e psiquiatras têm um consenso sobre o que é ser homem ou mulher, que dirá a sociedade. Enquanto a mulher transexual é aquela cuja identidade sexual é feminina, porém seu corpo (ou “sexo biológico”) é masculino, a travesti pode ser um terceiro gênero, nem homem, nem mulher, ou ambos. A maioria das mulheres trans optam por cirurgias plásticas para que seus corpos aparentem estar de acordo com suas identidades, como a cirurgia de redesignação sexual (erroneamente conhecida por “troca de sexo”), a retirada do pomo de adão e o implante de próteses de silicone. Já entre as travestis as intervenções cirúrgias não são uma regra, já que há uma variedade grande de expressões entre as pessoas deste gênero. Existem travestis que preferem adotar uma aparência mais tipicamente feminina, outras que optam pela neutralidade de gênero, enquanto outras “brincam” com as características tidas como masculinas ou femininas — mesclando barbas com maquiagem pesada, pêlos com saias e vestidos, etc.

Outro caminho para a adequação de gênero é a terapia de reposição hormonal, ou hormonização, caminho escolhido pela transexual norte-americana Courtney Demone, que está levantando a bandeira do tratamento diferenciado para com os diversos gêneros no Facebook e no Instagram.

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A luta de Courtney

Courtney Demone (Reprodução: Becca Carroll, Rivkah Photography)
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Moradora da cidade de Victoria, capital da província canadense da Colúmbia Britânica, Courtney Demone, de 24 anos, é uma transexual na fase inicial da homornização que está virando o símbolo da questão trans na luta pela aceitação dos corpos nas redes sociais. Courtney publica fotos sem camisa e está testando o Facebook e o Instagram a cada postagem para saber a partir de qual ponto na sua transformação física as redes sociais passarão a enxergar seus seios como femininos, e passar a censurá-los, como acontece com fotos de mulheres cissexuais (aquelas que se identificam com o gênero determinado pelos médicos no seu nascimento).

Nas políticas de uso do Instagram e do Facebook está claro que fotos exibindo mamilos femininos são proibidas, correndo o risco de remoção e, até mesmo, de bloqueio do usuário, caso as imagens sejam denunciadas. Mas nenhuma das duas redes de Mark Zuckerberg prevê a transexualidade nessa proibição e é essa a ferida que Courtney deseja cutucar. “Em algum momento meus seios crescerão o suficiente para que as redes sociais julguem que eles são dignos da censura”, contou a designer ao BuzzFedd do Canadá. “As políticas desses dois sites preveem a censura de corpos femininos e eles não estão fazendo isso comigo, então o que estão deduzindo sobre mim?”, indaga a transexual sobre o provável fato das redes sociais enxergarem as mulheres trans como homens e, portanto, seus corpos não seriam “dignos” da mesma censura aplicada aos corpos de mulheres cis.

(Reprodução: Becca Carroll, Rivkah Photography)

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Mesmo fazendo parte de uma minoria social, Courtney Demone é branca, ocidental, jovem, magra, loira, tem bons recursos financeiros e, sendo assim, está inserida em um padrão com maior aceitação pela sociedade, privilégio que muitas outras mulheres trans e travestis não possuem. Trans negras, idosas ou gordas, por exemplo, sofrem ainda mais invisibilidade e discriminação, e a luta de Courtney tenta contemplar também esses outros perfis. Mesmo que tenha ciência de que sozinha não será capaz de mudar as regras das redes sociais, Demone acredita que sua visibilidade poderá, no mínimo, chamar a atenção de Zuckerberg para o assunto. “Se eu conseguir a oportunidade de conversar com alguém do Facebook ou do Instagram, já terei realizado um sonho”, diz a canadense.

No Brasil não é muito diferente

Trazendo o assunto para a realidade brasileira vemos que a situação é praticamente a mesma. Mulheres cis têm seus seios proibidos de aparecerem nas redes sociais, uma vez que são vistos com olhos sexuais e proibitivos, e mulheres trans enfrentam, além de preconceito, a dúvida sobre como estariam sendo vistas pelos censores do Facebook e do Instagram — como homens ou como mulheres.

Ledah Martins conversou com o Canaltech sobre o assunto. Transexual, Ledah tem 25 anos de idade e se divide entre seus trabalhos como maquiadora, DJ e produtora de eventos, além de estudar psicologia na FMU, em São Paulo, capital. A jovem utiliza o Facebook e o Instagram tanto pessoal quanto profissionalmente e, muitas vezes, publica selfies, já tendo inclusive postado algumas fotos mais “ousadas”. E sim, Ledah já teve que remover fotos denunciadas por violarem os “padrões da comunidade do Facebook sobre nudez”.

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A maquiadora, DJ e estudante de psicologia Ledah Martins (Reprodução: Facebook/Ledah Martins)

“Vivo sendo denunciada e nunca postei nudez. Eu posto fotos sensuais de ensaios que fiz ou mesmo selfies. Nessa semana fui denunciada por uma foto onde meus seios estão devidamente cobertos por stickers”, conta. Ledah também revelou que já foi vítima de mensagens de ódio enviadas pela rede de Zuckerberg quando participou de uma campanha contra a transfobia iniciada pelo Humaniza Redes, movimento social coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Política para as Mulheres, o Ministério da Educação, Ministério das Comunicações e o Ministério da Justiça. “Me chamaram de coisas horríveis, mas o Humaniza Redes deletou todos os comentários maldosos nas minhas fotos depois de encaminhá-los para denúncia”, conta a DJ e maquiadora.

Para Ledah, as políticas de uso nas redes sociais são sim importantes, mas devem ser revistas. “Não sou contra essas políticas, afinal, toda comunidade precisa de regras para manter a boa convivência. O que eu acho hipócrita é permitirem denúncias em fotos que não violam de fato as regras”, como foi o caso da sua última foto denunciada que, felizmente, não precisou ser removida.

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Foto de Ledah que recentemente foi denunciada por, teoricamente, violar as regras da rede social (Reprodução: Facebook/Ledah Martins)

Da mesma forma que aconteceu com Ledah, a transexual Dorothy Lavigne, de 37 anos, também precisou remover fotos publicadas no Facebook sem que houvesse uma exposição abusiva. A estudante de história na UFRJ trabalha como estagiária em uma organização que educa crianças com necessidades especiais e, por conta de sua ocupação, prefere não publicar fotos sensuais ou que revelem alguma parte censurável de seu corpo. No entanto, costuma postar selfies e sofrer com denúncias com as quais não concorda.

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A paranaense atualmente moradora da cidade do Rio de Janeiro Dorothy Lavigne (Reprodução: Facebook/Dorothy Lavigne)

“Já recebi mensagens de ódio, em especial nas fotos em que falo sobre empoderamento e sobre afetividade para com pessoas trans”, conta Dorothy. Quanto às políticas de uso das redes sociais, a estudante acredita que “as redes abertas a menores de idade devem, sim, censurar, apesar de eu achar essa divisão entre menor e maior, capaz e incapaz, bem complicada. Mas esse não deveria ser o caso do Facebook que, teoricamente, era para ser um site só para maiores, né?”, questiona.

Já Íka Carneiro, de 21 anos, apesar de não ser uma mulher transexual como Ledah e Dorothy, também passa pelo inconveniente de ter fotos denunciadas somente por ter algum mamilo à mostra, ou nem isso. Travesti, a estudante nascida no interior do Ceará atualmente mora em São Paulo e utiliza o Facebook para fins pessoais, mas também acessa e publica material na rede como uma ferramenta de militância. Íka costuma publicar várias selfies e é de praxe receber a fatídica notificação dizendo que sua foto foi denunciada. A quantidade das denúncias é tão grande que a jovem já foi bloqueada no Facebook quatro vezes, precisando criar um segundo perfil para continuar em contato com seus amigos.

“Estou sem poder usar minha primeira conta por um mês, sem poder postar, comentar, curtir, responder mensagens, etc.”, relata. “Postei um autorretrato com um sutiã mais embaixo, na barriga, e os seios expostos. Denunciaram e fui bloqueada. O engraçado é que meus seios ainda são lidos como ‘masculinos’, porém o Facebook e suas políticas consideraram ser um seio feminino e me fizeram excluir a imagem”.

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A foto de Íka Carneiro que, após denúncias, causou o bloqueio temporário de sua conta (Reprodução: Facebook/Íka Carneiro)

Íka acha “curioso” que o Facebook, assim como a nossa sociedade, ache necessário e justo censurar mamilos femininos. Para a travesti, “essa é uma das características sociais mais evidentes que demonstra que vivemos em um Estado que não trata igualmente, como a legislação prevê, homens e mulheres”. E essa discrepância no tratamento entre os gêneros atinge com ainda mais violência as pessoas que se identificam com gêneros entre o masculino e o feminino — pessoas trans, transgêneros, transexuais e travestis.

Com relação às regras de uso das redes sociais, Íka acredita que até mesmo os órgãos genitais deveriam ser encarados com mais naturalidade, sem que sejam necessariamente vistos sob uma ótica pornográfica. “Nosso corpo é político, não deve ser censurado, mas, infelizmente, nós sofremos essas discriminações. Para mim, é contraditório pensar que uma mulher trans que ainda não pôde trocar sua documentação — ou seja, ainda é considerada um homem perante a lei — não possa estar com os mamilos à mostra. Pensando sob essa perspectiva, a gente consegue imaginar quão tola é essa abordagem que a lei e a sociedade têm sobre nossos corpos”, completa.

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Nomes sociais também são um problema

Além das denúncias (justificáveis ou não) em suas fotos, as travestis e transexuais também passam por outro inconveniente no Facebook: a questão do nome social versus nome civil. A rede de Zuckerberg exige que seus usuários se cadastrem com seu nome “verdadeiro”, ou seja, o nome de registro, podendo adicionar seus apelidos em outro campo. No entanto, para pessoas que não se identificam com aquele nome do registro civil essa regra do Facebook traz bastante constrangimento.

Ledah Martins contou que o Facebook já exigiu que a transexual alterasse seu sobrenome, que era artístico, restando a opção de colocar o sobrenome que consta na sua certidão de nascimento. Dorothy Lavigne ainda não passou por essa situação, mas disse que, assim que o Facebook decidir que seu nome deve ser alterado para o nome “real”, abandonará a rede social, uma vez que seu nome escolhido é seu nome real, conforme sua identidade transexual. Já Íka Carneiro não passou por esse problema, pois seu nome social é parte do nome de registro. Íka julga ser incoerente a obrigatoriedade de utilizar o nome civil na rede social, uma vez que as pessoas trans estão constantemente enfrentando a necessidade de se afirmarem em todos os espaços da sociedade, inclusive o virtual.

A fim de combater os perfis “fake” que surgem diariamente na rede, o Facebook monitora os dados cadastrais dos usuários e, duvidando da veracidade de alguma informação (como o nome), exige que seja feita a alteração. No entanto, essa política acaba tratando pessoas trans e até mesmo artistas — como drag queens — como sendo perfis falsos. Ledah contou que alguns de seus amigos que performam na noite como drag queens acabaram aceitando usar no Facebook seus nomes de batismo, o que dificulta o acesso e a identificação de seu público, pois ninguém os conhece por “Marcelo” ou “Rodolfo”, mas sim pelos seus nomes extravagantes e, comumente, femininos. “Na minha opinião, é um desrespeito para com o trabalho desses artistas, mas, no caso de pessoas trans, essa regra já fere o respeito à sua identidade de gênero”, acredita. “Nome e gênero são algo pessoal que foge da decisão de terceiros. Cabe a nós mesmas definirmos ou não definirmos, se assim desejarmos”, conclui a futura psicóloga.