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Boiled Angels, a HQ considerada a revista mais ofensiva já feita nos EUA

Por| 05 de Junho de 2022 às 11h00

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Journeyman Pictures
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Os anos 1990 foram de mudanças comportamentais e quedas de padrões, com o questionamento de várias convenções sociais ultrapassadas para uma sociedade cansada de opiniões e diretrizes que ainda se apoiavam em orientações estabelecidas nas décadas anteriores. Era um momento de ansiedade com a chegada do “futuro” dos anos 2000.

Foi nesse cenário que o quadrinhista norte-americano Mike Diana lançou Boiled Angels, publicação independente provocativa e considerada por autoridades estadunidenses como “a revista mais ofensiva já produzida nos Estados Unidos". O autor usava traços quase infantis para provocar o politicamente correto, com imagens de violência, sexo e insultos à religião e aos valores da famílias conservadoras do país.

Por conta disso e do momento em que vivíamos; e pela associação de seu traços com assassinatos em série na Flórida, Diana foi levado a julgamento e prisão. Foi a primeira HQ a causar o encarceramento de um artista por obscenidade nos EUA. Na época, ele tinha 21 anos.

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Abaixo estão os detalhes de como e por quais motivos isso aconteceu.

Mas, atenção: descrições e imagens que serão apresentadas ao longo do texto podem sugerir violência e perturbação mental, portanto, é recomendável que os leitores mais sensíveis a esses assuntos deixem esta página.

Anos 1990: queda de padrões e dos super-heróis abriram terreno para Boiled Angels

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Antes de falarmos sobre o autor e sua criação, é preciso entender o contexto no qual ele estava inserido. A virada dos anos 1980 para os anos 1990 veio com mudanças e projeções que causavam estranhamento, ansiedade e muitos questionamentos em todo o mundo.

A Guerra Fria tinha acabado — pelo menos abertamente —, o Muro de Berlim caiu, a economia global estava se adaptando aos tempos modernos com avanços tecnológicos e a sociedade se preparava para a virada dos anos 2000, que traziam uma pressão por mudanças em muitos padrões comportamentais. Todo mundo se cobrava para rever e atualizar o que não estava dando certo, para entrar em um novo século deixando para trás muita coisa estabelecida ao longo dos 100 anos anteriores.

Os computadores invadiam os lares e centros urbanos, a internet ainda engatinhava e a opinião pública se orientava por meio dos relatos publicados em jornais e exibidos na TV. Foi uma década que a arte ajudou o mundo a compreender melhor que vivemos em um planeta que a cada dia mostrava que os seres humanos e o globo são muito mais complexos do que o passado lembrado com nostalgia pelos mais velhos — que, aliás, movidos pelo medo da incerteza e a falta de interesse por aceitar mudanças e diferenças, evocavam uma época que só parecia melhor porque a escassez de informações escondia tudo o que incomodava ou ameaçava o status quo.

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Veja bem, de 1900 a 2000, houveram mudanças que nunca tinham acontecido em menos de 100 anos, sejam na área médica, nos comportamentos, na economia, no entretenimento, na tecnologia e em outras áreas. Mas também vieram com duas grandes guerras e muitos imigrantes criando famílias e populando o planeta em terras estrangeiras. O sexo era ainda mais impregnado de tabus que se arrastavam há décadas, e era tratado na esfera pública, essencialmente, como meio de reprodução para a geração de filhos e constituição de famílias.

Então, os anos 1990, às vésperas da virada do século, foram palco de questionamentos sobre o senso comum acerca de valores humanos, principalmente aqueles que se apoiavam em tradições, família e religião. E a arte teve um papel importante para isso, pois a mídia promovia e distribuía mais rapidamente as canções, filmes, videoclipes, gibis e todo tipo de produção cultural.

Os quadrinhos de super-heróis, que tinham escalado um sucesso avassalador da virada dos anos 1930 até o final dos anos 1980, apresentavam fórmulas desgastadas, o que levou as editoras a apelar por histórias pouco criativas, bastante violentas e sexualizadas — tudo para chamar mais atenção e, claro, lucrar, mesmo com material abaixo da linha do medíocre. O resultado, com algumas exceções, como os X-Men de Chris Claremont e Jim Lee, foram edições com mortes sensacionalistas, que, embora trouxessem cifras milionárias com recorde de vendas de gibis em todo o mundo, mostravam que os executivos das editoras não estavam muito preocupados com a qualidade das tramas. 

A queda nesse segmento abriu espaço para as publicações estrangeiras, como o mangá; e levou os leitores insatisfeitos a buscar onde estava a vanguarda na época: o mercado independente começava a se organizar, distribuir e comunicar melhor, graças ao diálogo mais amplo e frequente que os avanços tecnológicos traziam para os criadores, o público e as editoras.

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E aí chegamos ao fanzine Boiled Angels, publicado por Mike Diana no final dos anos 1980 e começo dos 1990.

Boiled Angels foi associado aos crimes na Flórida

Mike Diana cresceu em meio à revolução causada pelos quadrinhos underground nos anos 1960 e 1970, que trouxeram trabalhos de artistas como Robert Crumb, Gilbert Shelton, Barbara Mendes, Trina Robbins e outros criadores influenciados pela Geração Beatnik, pelo punk rock, pelo movimento hippie Flower Power e a revolução sexual.

Diana surfou na onda ascendente dos fanzines e de histórias que ofereciam diferentes tons e atmosferas, muitas vezes buscando a iconoclastia e a provocação, em páginas que traziam experiências gráficas e narrativas.

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Os dogmas questionados pelos artistas alternativos na seara underground das décadas anteriores influenciaram criadores como Peter Bagge, os irmãos Hernandez, Charles Burns, Daniel Clowes, Chris Ware, Jessica Abel, Roberta Gregory, Joe Sacco, Adrian Tomine, entre outros autores que saíram do anonimato para se tornarem estrelas na editora Fantagraphics.

Diferente das gerações underground passadas, a dos anos 1990 era mais organizada e oferecia diferentes perspectivas e narrativas de maneira mais ampla. A jornada do divertido personagem Bone, de Jeff Smith; e as agruras adolescentes de Estranhos no Paraíso, de Terry Moore, traziam leituras mais leves e para toda a família.

Mas, claro, no “underground do underground”, haviam artistas que buscavam abordagens mais agressivas, com o objetivo de chamar a atenção e promover a reflexão por meio do desconforto e da ironia e deboche sobre valores tradicionais. Diana se identificava com as propostas de artistas que usavam suas histórias para chocar as pessoas. Boiled Angels trazia traços toscos e muitas vezes infantis em meio a imagens perturbadoras e repugnantes, que eram vistas por muitos como sugestão a abuso de drogas, mutilação, estupro, depravação, pedofilia, necrofilia, heresia, desobediência e transgressão.

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Isso era tão diferente dos padrões da época que atraiu muitos curiosos que se tornaram fãs, principalmente porque Boiled Angels incomodava, e ainda tira do sério bastante gente — especialmente os reacionários e conservadores. A reação causada pelas páginas do fanzine satisfazia muitos leitores, que gostavam de saber que o tom debochado e sarcástico causava tanta fúria e indignação nas comunidades mais tradicionais.

E Boiled Angels gerava tanto asco e aborrecimento que chegou a perturbar as autoridades dos Estados Unidos, que associaram a publicação a uma onda de assassinatos na Flórida.

O julgamento e a prisão do criador de Boiled Angels

Daniel Harold Holling foi um serial killer que matou cinco estudantes em Gainesville, na Flórida, entre 1989 e 1990. Essa história chocou a opinião pública, que viu nos anos 1970 e 1980 a escalada de crimes causados por assassinos seriais. Vale destacar que as pessoas sentiam um medo crescente sobre esses tipos de bandidos, já que David Berkowitz, o Filho de Sam; John Wayne Gacy, o Palhaço Assassino; Jeffrey Dahmer, o Canibal de Milwaukee; e Ted Bundy tiveram seus crimes muito divulgados na mídia.

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Embora Holling tenha sido preso em 1990 e, em 1991, acusado como responsável pela morte de várias pessoas, ele só foi levado a julgamento em 1994. Essa demora e o clima de tensão em uma época sem internet, com muitas informações influenciadas pela pressão de uma sociedade que cobrava por uma resposta urgente a esses crimes, fez com que as autoridades tentassem acalmar os ânimos com uma ação de grande repercussão midiática.

Em 1991, Boiled Angels acabou caindo na mesa de um agente de polícia na Califórnia, que associou os assassinatos em série em Gainesville às chocantes ilustrações de sexo e violência das páginas da revista. Posteriormente, esse oficial levou a possível conexão aos colegas da Flórida, com teorias sem provas concretas e cheia de relatos especulativos, que criaram uma narrativa, mesmo bastante distorcida, capaz de convencer os investigadores a levar a suspeita a sério.

Mesmo com o teste de sangue de Diana descartando a conexão dos crimes com o autor e o próprio Holling se declarando culpado pouco antes de ser condenado à morte, o procurador Stuart Baggish ordenou a prisão do autor, que foi o primeiro cartunista a ser colocado atrás das grades sob acusação de “obscenidade” nos Estados Unidos. A situação foi tão forçada que o juiz do caso, Walter Fullerton, acelerou o processo e o julgamento aconteceu com um juri formado somente por pessoas pelo menos com 10 anos a mais que Diana, todos da ala conservadora.

O julgamento, que teve bastante repercussão, aconteceu em apenas quatro dias, com a deliberação da pena ocorrendo em somente 90 minutos. O juri declarou Diana culpado em 1994. Em 2018, o diretor Frank Henenlotter lançou o documentário Boiled Angels: O Julgamento de Mike Diana, que detalha como funcionou esse processo, bastante questionado nos anos seguintes às penas e multas sofridas por Diana.

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Prisão e liberdade do criador de Boiled Angels

Diana foi condenado a três anos de prisão, e, após apelação sobre a pena, ficou quatro dias na prisão. Ele foi solto sob monitoramento em três anos de liberdade condicional supervisionada pelo grupo Exército da Salvação. O artista teve que pagar fiança de US$ 3 mil (R$ 14 mil na cotação atual), em parcelas mensais de US$ 100 (R$ 477 nos valores atuais).

Fullerton condenou Diana a oito horas de trabalhos comunitários durante 156 semanas consecutivas. Ele também foi ordenado a passar por constantes avaliações psiquiátricas, com até dez meses de terapia pagos do próprio bolso. O artista ainda teria que se submeter a exames de urina, respiração ou sangue sob demanda, mas isso posteriormente foi tirado da pena por conta da apelação.

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Sua residência poderia ser revistada a qualquer momento sem um mandado. Diana foi obrigado a concluir um curso de ética jornalística e foi proibido de entrar em contato com menores de 18 anos. E mais: ele não poderia possuir ou criar, mesmo sem publicar ou distribuir, desenhos que fossem "obscenos".

Diana ainda foi acusado de violação da liberdade condicional, e, mesmo pagando R$ 2 mil (R$ 9,5 mil na cotação atual), teve um mandado de prisão emitido na Flórida. Em 1997, uma petição no Supremo Tribunal dos Estados Unidos pediu a remoção da sentença, mas teve a requisição negada. Ao longo dos anos, vários quadrinhistas saíram em defesa de Diana, a exemplo do criador de Sandman, Neil Gaiman, e do autor Scott McCloud, de Desvendando os Quadrinhos. Mas ele só teve sua liberdade condicional removida 26 anos depois da condenação, em fevereiro de 2020.

Os familiares do artista até hoje se revoltam ao descrever como tudo isso causou muitos problemas a Diana, que voltou a publicar Boiled Angels e continua produzindo e vendendo suas chocantes obras. Ele também eventualmente colabora com outros artistas e tem pintado telas. Sua condenação ainda causa questionamentos sobre a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que prevê liberdade de expressão e não foi aplicada no processo do autor.

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E os fãs, que já ficavam do lado de Diana nas propostas de surpreender, debochar e brincar com a hipocrisia de quem prega valores longe de serem aplicado em seus próprios cotidianos, transformaram a trajetória do ilustrador em mais um episódio em que as leis estadunidenses fecharam os olhos para um caso que, se fosse revisto e favorável ao artista, poderia abalar as próprias estruturas dos tribunais ianques.