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A internet não é tão global como você pensa

Por| 15 de Setembro de 2017 às 15h35

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Frédéric Martel é pesquisador e escritor francês. Tem 49 anos, doutorado em Ciências Sociais e graduações em Direito, Ciências Políticas e Filosofia. Esse currículo o credencia a ser um nome que poderia navegar tranquilamente pelas mais altas cadeiras da academia e dedicar-se a pesquisas e livros apenas, mas Martel faz o estilo do velho jornalismo.

Como definiu Gay Talese, esse velho jornalismo precisa do repórter que suja os sapatos de lama, pois isso indica que ele foi ao local apurar os fatos — e apuração no local é sempre melhor do que a feita pelo telefone.

Pois Martel adora colocar o pé na lama. Ele viaja todos os anos para pesquisar material para seus livros, entrevistar pessoas comuns e descobrir como elas vivem neste mundo em constante transformação tecnológica.

Ele é autor de nove livros, dois lançados no Brasil: Smart e Mainstream, ambos pela Civilização Brasileira.

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Em Mainstream, ele tenta entender como se produz um best seller em diferentes partes do mundo. Por cinco anos, ele viajou para cinco países e entrevistou 1.200 pessoas a fim de compreender o sucesso das novelas, de Bollywood, de filmes em lugares como África subsaariana e Catar e até o papel da Coca e pipoca no cinema americano.

Já em Smart, ele propõe a tese de que a internet, com todo seu poder de unir povos e culturas e de fazer a globalização muito mais fácil, na verdade, tem seu maior potencial em ações locais.

Sim, a internet é muito mais eficiente para as relações próximas, seja para dar um match, trocar mensagens com amigos ou ficar sabendo o que está acontecendo na sua cidade. Claro, é importante saber o que se passa na Europa, nos Estados Unidos, se a Coreia do Norte vai começar uma guerra nuclear ou se o iPhone X falhou no reconhecimento facial.

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Mas as revoluções, os movimentos sociais e as relações afetivas são, principalmente, locais. E é nesse ponto que a internet reforça seu valor.

É dessa nova cartografia digital que sairão novas revoluções, por meio das múltiplas internets que ele desenha no seu livro.

Para entender essa tese, o Canaltech entrevistou Martel com exclusividade para o Brasil, um país que frequenta seus livros. Ele explica o poder dessa internet local e os movimentos revolucionários sob o olhar da ação digital e fala de aplicativos que estão fazendo a diferença pelo mundo.

Canaltech: Smart foi publicado em 2014. O que mudou desde o lançamento?

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Frédéric Martel: Quando você escreve um livro sobre assuntos atuais e, especialmente, se é um livro sobre a internet, você precisa ter em mente que ele pode se tornar anacrônico muito rapidamente. Então, o trabalho de um sociólogo é encontrar regras e elementos que sejam intangíveis, mesmo que o Yahoo morra ou a Amazon compre a Whole Foods. A conclusão do meu livro é sobre globalização e internet.

CT: Você defende a tese de que a internet é fundamentalmente localizada. O que isso significa para quem sempre ouviu que a rede uniria os povos?

FM: Eu acredito que o conteúdo ainda é muito geolocalizado, como eu disse. Isso significa que a internet não é global para grande parte dela. Você pode usar o mesmo iPhone e os mesmos aplicativos do Facebook que pessoas de outras partes do mundo, mas seus amigos estão principalmente em seu país, falam seu idioma e fazem parte da sua comunidade. Um estudante do ensino médio em Brasília não tem muitos amigos em Bombaim ou em Paris. Ele ainda está muito localizado. Ferramentas, softwares, aplicativos são globais; o conteúdo não é.

CT: É possível identificar exceções?

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FM: Há, naturalmente, algumas exceções, desde o último filme do Homem-Aranha até Katy Perry — isso se eu me limitar a esses eventos da alta temporada da indústria de entretenimento. Em 2001, o Homem-Aranha disse: “Grande poder vem com grandes responsabilidades”. Hoje, o novo Homem-Aranha, narcisista, via Snapchat e YouTube, caçando vilões por geolocalização, é mais o estilo: "Pequenos poderes vêm com pequenas responsabilidades". É a era das redes sociais.

CT: Você disse que quer fazer uma pesquisa mais profunda sobre o Brasil. Em que o país o surpreende?

FM: Gosto muito do Brasil porque é um país singular. Grande, interessante, musical, dançante, legal e, em primeiro lugar, quente. Eu vou para o Brasil todos os anos, gosto de viajar para aí, já conheço mais de dez cidades no Brasil, e não fico apenas em Ipanema. Fiquei muito impressionado com o que está sendo feito com a internet em favelas, por exemplo, embora eu reconheça a situação difícil. O Brasil pode ser um líder em cidades inteligentes e na melhoria das áreas empobrecidas graças à Internet.

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CT: Desde 2013, o Brasil está passando por uma série de manifestações populares. Uma grande parte delas começou na rede social. Ativistas recrutaram pessoas e tomaram as ruas em protestos. Você estudou esses eventos? Como você avalia as funções da internet e das redes sociais nesses eventos?

FM: Sim, eu tento seguir esses movimentos. Eu estava em Brasília na noite em que Dilma Rousseff deixou o poder. A situação do Brasil é muito específica e não quero julgar o momento atual. Mas o uso dessas ferramentas não é exclusivo do Brasil. E estava em Madri durante o movimento Occupy, no Líbano durante o You Stink Movement, em Hong Kong para o Movimento Umbrella, e todos eles foram orientados pelas redes sociais. Ao mesmo tempo, não penso que revoluções ou movimentos sejam consequência da internet. A Primavera Árabe teria acontecido provavelmente sem a internet, mas ela acelerou e a tornou mais rápida, eficiente e forte.

CT: Muitas das manifestações políticas nasceram de grupos criados na internet e propagados em redes sociais. É este o caminho mais natural agora para o nascimento de um movimento político?

FM: Eu acredito que sim. Eu sou um grande fã do que chamo de “Civic Tech" [tecnologia cívica, na tradução livre]. Blogs, redes sociais, Twitter, vídeos políticos do YouTube, até Instagram são excelentes. Precisamos estar abertos a todas essas mudanças, mas ao mesmo tempo também temos que saber que a democracia precisa de representação, um parlamento, partidos políticos — embora eu saiba como eles são ruins no Brasil. Eu não acredito no tipo de democracia direta de Rousseau [o filósofo francês defende uma democracia direta, sem intermediários, como um parlamento] e teria medo de uma democracia na internet. Devemos acreditar na internet, mas não muito.

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CT: A eleição de Donald Trump inseriu uma nova entrada no dicionário: pós-verdade. A campanha presidencial foi definida pelas notícias falsas, como muitos analistas afirmaram? Como a internet deve lidar com esses problemas?

FM: Não acredito que Donald Trump tenha sido eleito graças a redes sociais e notícias falsas. Ele não é o Homem-Aranha do ano. Ele ganhou porque Hillary Clinton foi um desastre. Michael Bloomberg, Joe Biden, até Elisabeth Warren teriam sido eleitos em vez dele. Como o Brexit também não é a consequência de notícias falsas. Você não pode pensar que as redes sociais elegeram Trump ou aprovaram o Brexit. As redes sociais não são boas ou más sozinhas. Eles dependem de nós.

CT: Então qual o risco das notícias falsas?

FM: Notícias falsas sempre existiram em Cuba, na antiga União Soviética, na China — ou com a ditadura da propaganda de Maduro na Venezuela. Eu acho que os riscos reais estão em outro lugar: a aceleração da informação, o déficit da atenção, a abundância de informações, o acesso, a cultura livre, a conexão permanente, o vício, os dados. Algumas dessas coisas são boas, outras não. Na realidade, é uma palavra mais aberta, mais diversificada, mais acessível para muitas pessoas que estavam fora do alcance de qualquer conteúdo global.

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CT: Como corrigir os erros e os limites do novo modelo?

FM: Precisamos de alfabetização digital: aprender sobre privacidade, dados, contexto, tempo e espaço. Eu também acredito nas inovações das Civic Techs, que são inovadoras: Socrata, FixMyStreet, LiquidFeedback, CitySourced, Code for America, Code for Germany, Access Map, CityVoice etc. No Quênia, eu vi o poder de aplicativos como MPesa [dinheiro eletrônico] e Ushahidi [contra a violência]. Na Índia, o projeto do Digital UniqueID faz a diferença. Em Gaza, Hong Kong, Cuba, Venezuela ou Rússia, há muitas ferramentas desenvolvidas pela oposição democrática.

CT: Recentemente, os eventos em Charlottesville provocaram reações em cadeia de empresas de tecnologia. Facebook, AirBnB, Google, GoDaddy, PayPal, entre outras, disseram que iriam bloquear usuários e páginas ligadas a movimentos supremacistas. Como você analisa esta decisão?

FM: Eu sempre sou contra qualquer forma de censura, mesmo quando é contra pessoas racistas, que atacam democracia, mulheres ou gays. Eu fico muito desconfiado se Google e Facebook criam suas próprias políticas e policiam seu conteúdo. Isso é algo que às vezes pode ser necessário, mas não deve ser uma regra sem juízo e sem controle jurídico.

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CT: Como combater então esses movimentos?

FM: Estou muito interessado também no fenômeno chamado Doxxing, que publica informações ruins sobre os racistas [o termo se refere a práticas de desmascarar identidades de perfis falsos]. Mesmo que eu concorde com o objetivo, desaprovo a maneira como é feito, exceto se for com seriedade e regras de jornalismo e deontologia [teoria que defende que as escolhas são moralmente necessárias, proibidas ou permitidas].

CT: As redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, Pinterest e outras) também passam por esse conceito de geolocalização? Isso significa que cada país dentro de seu contexto acaba escolhendo sua rede social ou elas tomam caminhos independentes?

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FM: Sim, claro. Mais uma vez, você pode seguir um cantor americano ou um jogador de futebol do Barcelona no Instagram e no Twitter. Existe um monte de conteúdo global, mas a maior parte do que você consome está em seu idioma, em seu país, com seus amigos.

CT: Há um artigo de NiemanLab [núcleo de estudos sobre jornalismo] que diz que o podcast ainda vai nos surpreender cada vez mais. O texto aponta para três fatos que são fundamentais para o sucesso do podcast: boa experiência, bom conteúdo e mais receita. No entanto, no seu livro, você diz que o podcast é uma mídia em decadência. Você ainda mantém essa afirmação? Como você avalia este artigo?

FM: São duas coisas diferentes. O modelo de podcasts do iTunes, por assinatura e acumulação de episódios, este, eu receio, vai morrer. É como o RSS ou o Google Reader. Parece interessante, mas depois de um tempo você não consegue ouvir todas as coisas que você acumulou. Esse é o meu ponto. Ao mesmo tempo, acredito no podcast como um conteúdo que você pode encontrar sempre que quiser, como a TV de recuperação [catch up TV, o modelo que permite o usuário gravar um programa e assistir depois]. Este podcast de recuperação é muito eficiente. Isso irá durar e fará receitas.

CT: Em seu livro, você diz que a conexão de internet de banda larga nos EUA é muito cara. Isso também é um fato no Brasil. Os planos de telefone pós-pago de celular (3G e 4G) também são muito caros e não acessíveis para a maioria da população, que usa planos de internet pré-pagos com abastecimento diário de dados. Você acha que preço ainda é determinante para o aumento da influência da internet nas relações sociais?

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FM: Fiquei chocado com os preços da internet no Brasil, são muito mais caros do que na França, onde você pode ter acesso total de telefone ilimitado e dados para o seu smartphone e TV por 20 euros por mês [cerca de R$ 74]. Tudo isso deveria mudar. É apenas uma questão de regulamentação política. Você precisa de um governo dedicado para abrir o mercado e a infraestrutura e ajudar uma economia de mercado madura — Roosevelt, e não Castro! — com o intuito de resolver o problema [referências a Franklin Roosevelt, presidente dos EUA de 1933 a 1945 e autor do New Deal, e Fidel Castro, que esteve à frente de Cuba de 1959 a 2008]. É possível. Eu acredito na economia de mercado, mas desde que justa, sem abusar da posição dominante e com uma concorrência leal. Esse deveria ser o objetivo número um do governo.

CT: O cenário que você descreve nos países do Oriente Médio mostra a importância do acesso à internet como forma de confronto e resistência e como plataforma para divulgar informações. Quais outras possibilidades a internet fornece nesses países?

FM: Ela lhe dá amigos em Gaza, segurança na Síria, informações se você é um refugiado no Líbano ou no Egito. Eu estive em todos esses países e eu vi desde seu início o que eu chamo de "século digital" — e é incrível.

CT: Em seu livro, você mostra que um modelo Smart pode acontecer em locais de diferentes realidades sociais e políticas. Esses fatores se tornarão determinantes no futuro?

FM: Eu acho que a internet afetará e mudará a atual geopolítica do mundo. Isso tornará os países mais bem sucedidos ou com um alcance econômico menor. Mas, para mim, uma das questões-chave é o que eu chamo de "curadoria Smart": como encontrar o melhor conteúdo, o melhor aplicativo, usar as melhores ferramentas e aprender a melhorar sua vida e seu país ao mesmo tempo.