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Análise | Devotion é a queda de uma família, mas polêmica deve falar mais alto

Por| 01 de Março de 2019 às 10h09

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Análise | Devotion é a queda de uma família, mas polêmica deve falar mais alto
Análise | Devotion é a queda de uma família, mas polêmica deve falar mais alto

Pegue qualquer lista dos filmes de terror mais perturbadores e assustadores dos últimos anos e ela com certeza vai conter pelo menos um exemplar, se não mais, da escola asiática. Do outro lado do mundo, onde a tradição se reúne ao misticismo e aos costumes de uma sociedade nem sempre aberta, estão as histórias mais aterrorizantes que chegaram a originar até mesmo versões ocidentais que falharam, justamente, nesse objetivo central.

Devotion, da desenvolvedora Red Candle Games, tenta trazer um pouco desse histórico ao mundo dos games. Os produtores independentes, baseados em Taiwan, se inspiraram em grandes obras do cinema e em outros títulos de destaque do cenário atual para criar uma história que é, ao mesmo tempo, intimista e surreal. É uma trama de crenças, alucinações e terror, mas também uma que poderia estar acontecendo aí do seu lado, na casa do seu vizinho.

É, também, um título daqueles que, quanto menos você conhecer sobre ele, maior o impacto das imagens e situações. Basta saber que estamos em um complexo de apartamentos taiwanês em meados dos anos 1980 e observamos a história a partir dos olhos de um de seus participantes. Não sabemos exatamente nosso papel, mas logo de início percebemos que somos mais do que meros espectadores dessa história.

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O conjunto visual do jogo exclusivo para PC é parte extremante importante dessa sensação desoladora, com gráficos fotorrealistas dando o tom de toda a aventura e fincando seus pés no chão. É claro, estamos falando de uma casa taiwanesa, mas ela é plenamente reconhecível por qualquer um que tenha um pouco de bagagem. É um ambiente bagunçado, com fotos, sujeira e resquícios de vida. Alguém morou ali e, como percebemos ao longo de Devotion, a casa que deveria ser um refúgio se tornou o palco dos mais aterrorizantes pesadelos.

O game se aproveita de conceitos comuns dos walking simulators de terror. Quando olhamos friamente, dá para enxergar o título como uma série de “gatilhos” na qual uma ação desencadeia movimentos no cenário ou mudanças que levam a história para frente. É um estilo de horror magistralmente aplicado por Hideo Kojima no saudoso P.T., por exemplo, e aqui replicado com maestria pela Red Candle Games.

Existem os jump scares, sim, mas eles não são baratos como na maioria dos títulos baseados neles. Existem também os momentos em que esperamos o susto e ele não vem, tão aterrorizantes quanto. Mas o verdadeiro horror está nos documentos, fotos e artigos que compõem a jogabilidade, um estilo de “leve o item A ao ponto B” tradicional, também, dos walking simulator, mas que aqui serve completamente ao enredo.

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A trama de loucura, decepção, distanciamento e, como diz o título, devoção, nos coloca como peça central. Na primeira hora, é impossível não ter a sensação de que algo muito ruim está prestes a acontecer ou que estamos colocando em movimento uma engrenagem perigosa. Aos poucos, porém, percebemos que o mal já está feito, ao mesmo tempo em que só podemos proporcionar sua existência, sem fazer nada para impedir.

A Red Candle Games também toma certos cuidados em termos de design para garantir a ilusão de fotorrealismo. O tempo todo, somos bombardeados com fotos de pessoas reais e conhecemos os personagens dessa trama de loucura pelos nossos próprios olhos. Vídeos em live action e shows de televisão tradicionais dos anos 1980 também aparecem, mas não a ponto de nos distrair do ponto central nem causar aquela impressão brega de games que usam atores de verdade.

Mesmo na inevitável barriga, que acontece no terço final do game, a desenvolvedora mostra que sabe o que está fazendo. Ao apostar em um pouco mais de backtracking e exploração nos cenários, sabendo que isso pode tornar o game enfadonho caso o jogador não saiba bem como seguir em frente, a produtora também inclui no pacote algumas das alucinações mais assustadoras de todo o game como forma de “premiar” o jogador pelo progresso.

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Da mesma forma, no final caótico e um tanto destacado do realismo de todo o game, temos também uma conclusão surpreendente, daquelas que não se costuma ver em um filme de terror. Claro, não vamos contar o final aqui, mas ele é uma mistura de clareza, conclusão e desesperança, com um triste entendimento do que aconteceu, mas um desfecho pouco usual para o gênero.

Levando tudo isso em conta, chega a soar como a maior das tragédias o fato de Devotion acabar ficando mais conhecido pelas polêmicas em que se envolveu do que por seus fatores perturbadores e simplesmente assustadores. De campeão de vendas na Steam em seu final de semana de estreia, o título teve de ser retirado às pressas do serviço devido à mensagem ofensiva ao presidente da China, Xi Jinping, escondida em uma das artes que adornam os cenários.

A desenvolvedora pediu desculpas, mas, até aí, o desastre já estava feito. E mesmo retornando à loja sem as mensagens, Devotion ainda será lembrado como o game que gerou revolta em toda uma nação. Uma pena, pois o maior sentimento, no fim das contas, deveria ser de perturbação. Até mesmo o futuro da Red Candle Games pode acabar comprometido, mesmo que sua obra permaneça.

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E para os fãs do bom horror, que passam longe das propostas vazias e baseadas em sustinhos que tomaram conta do mercado nos últimos anos, fica a tristeza aliada às sensações esquisitas e desgraçadas que Devotion deixa ao subir dos créditos. Mais uma prova de que os problemas, de verdade, machucam mais quando estão próximos de nós.

Devotion foi testado em cópia digital gentilmente cedida ao Canaltech pela Red Candle Games.