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Análise | Death Stranding e a tentativa de criar laços em um mundo desgarrado

Por| 01 de Novembro de 2019 às 04h01

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Análise | Death Stranding e a tentativa de criar laços em um mundo desgarrado
Análise | Death Stranding e a tentativa de criar laços em um mundo desgarrado

O que você faz quando não tem internet? Conversa com quem está em volta, como diz a placa daquela cafeteria hipster e meio avessa à tecnologia que você encontrou no Instagram? Vai ler um livro, jogar um game single player ou dar uma volta debaixo do sol? E se o mundo, de repente, ficasse completamente sem conexão, não com a internet, mas entre as pessoas, seus elementos e, principalmente, a própria realidade?

Como ficariam os conflitos mal resolvidos, os amores distantes e os laços familiares se o mundo, de repente, se tornasse uma terra arrasada, dominado por seres que você não entende muito bem o que são, mas sabe serem completamente assustadores. Tudo começou com uma explosão, mas essa metáfora também vale para eventos; em um rompante, em um segundo, em um único ato, tudo pode ser diferente, para sempre. Porém, sempre é possível mudar de novo, provavelmente não retornando ao passado, mas garantindo um novo amanhã.

Em Death Stranding você é o responsável por esse recomeço. O novo game de Hideo Kojima aposta em metáforas, elementos, discursos e, principalmente, histórias para nos colocar no papel de um ponto de luz em um mundo, literalmente, de trevas. Mesmo a nossa própria iluminação às vezes é falha, e enquanto tentamos buscar um rastro de heroísmo difícil de ser alcançado, também temos de lidar com os próprios conflitos e limitações na mesma medida em que eles precisam ser deixados de lado por um bem maior.

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É nessa balança que o designer e criador de Metal Gear nos entrega uma fábula tecnológica e até mística, mas que dialoga diretamente sobre o mundo de hoje. Se o Guns of the Patriots já falava sobre fake news, manipulação de dados e vigilância há 20 anos, Death Stranding dá um olhar futurístico para problemas de hoje, em que a criação de laços e a busca pela virtude se tornou muito mais complexa e difícil. O game, porém, faz questão de nos lembrar que isso ainda é possível.

Conexões em todo lugar

Durante todo o processo de desenvolvimento, muito se perguntou sobre o que exatamente seria Death Stranding. Um jogo de ação, terror, espionagem, mundo aberto, guerra? Seria difícil definir o título em um único gênero, é verdade, apesar de seus pilares básicos o aproximarem um bocado dos jogos de sobrevivência, aventura e dos simuladores de entrega. Sim, esse é o tipo de mistura bizarra presente em um game que tem um pouco de tudo, mas pode ser dividido claramente em duas partes de igual importância, totalmente conectadas, mas diferentes.

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Primeiro, então, falaremos do aspecto mais palpável e, pessoalmente, fácil de analisar, que é a jogabilidade. Em Death Stranding, andamos pelo mundo na pele de Sam Porter, um entregador a serviço da Bridges, uma empresa ligada à reconstrução dos Estados Unidos após um evento catastrófico que, de certa forma, pressionou o botão “desligar” do mundo. Agora, é ele um dos principais agentes responsáveis por virar essa chavinha.

O personagem interpretado por Norman Reedus também é um indivíduo especial. Quando o cataclismo aconteceu (e aqui nos referiremos a ele desta maneira, como forma de evitar spoilers), criou-se um abismo entre o mundo dos vivos e o dos mortos, chamados de BPs, com Sam sendo um dos indivíduos capazes de trafegar no limiar entre essas duas realidades. É isso que o torna tão importante, como se as relações familiares com o pouco que restou de liderança nos Estados Unidos também não fossem motivo o bastante para ele estar envolvido.

A missão dele e, por consequência, também a sua, é devolver o pouco de civilidade que, acredita-se, resta em um mundo devastado e vazio, onde apenas terroristas e ladrões de carga têm a coragem de transitar. É no meio deles que o jogador passa em sua tarefa de levar mantimentos, artigos pessoais, itens de colecionador, medicamentos e até pizzas ou cadáveres; mais do que isso, o objetivo maior é reconectar a América, levando contato, tecnologia e, principalmente, esperança aos cantos mais isolados do país.

Você começa a pé e tendo de aprender a lidar com conceitos realistas como o peso da carga nas costas de Sam, a velocidade do passo e, também, entendendo como o terreno acidentado desse mundo pode se tornar um pouco menos agressivo com o auxílio de outros entregadores que também estão desempenhando a mesma função. Death Stranding não tem modo multiplayer, mas é um jogo feito para ser jogado online. E acredite: isso vai mudar muita coisa para você.

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Aos poucos, novos itens e artigos que facilitam a jornada de Sam vão sendo liberados enquanto ele avança nas conexões e conhece novos personagens. Um esqueleto fortificado permite carregar mais carga ou dar mais estabilidade e um spray permite corrigir o dano causado pela chuva temporal que degrada tudo em que encosta. Armas e bombas preparadas de forma “artesanal” (novamente, falamos assim de forma a evitar spoilers) podem servir como defesa contra os seres do outro plano. A ideia, entretanto, não é exatamente entrar em combate, mas sim reagir a um ataque de forma a sair dali o mais rapidamente possível. Afinal de contas, conexões não são criadas na base da porrada.

Fragile (Lea Seydoux) é a entregadora de outra companhia desse mundo devastado, com uma história tão terrível quanto os próprios desígnios desse universo. É ela que também libera a viagem rápida, enquanto Deadman (Guillermo del Toro) é o especialista médico que ensina novas interações e possibilidades abertas pelo vínculo entre Sam e BB, o bebê de proveta que também possui uma misteriosa e pouco compreendida conexão com o outro lado.

E na medida em que as entregas vão acontecendo e o mundo vai sendo desbravado, surgem os dois grandes obstáculos dessa jogabilidade também motivada pelas metáforas e totalmente conectada à trama desse mundo. Em Death Stranding, mesmo quando se fala em gameplay, todos os aspectos estão conectados à construção desse mundo. Por isso mesmo, soam completamente estranhos os momentos em que Kojima tira o controle de nossas mãos para mostrar que existem perigos pelo caminho.

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Como dito, o combate contra os BPs assume ares reativos e não ofensivos, com a ideia sempre sendo escapar o mais rápido possível da área em que eles estão. O game, entretanto, faz questão de ativar uma incômoda câmera lenta sempre que a chuva começa ou um inimigo está nos arredores. Novamente, o objetivo nestes casos é sair dali, mas o game sempre fará com que você pare justamente no ponto mais crítico, perdendo momentum quando você mais precisa dele.

Isso também vale quando estamos a bordo de veículos que já sofrem por si só com problemas de dirigibilidade e física. Claro, estamos percorrendo terrenos sempre acidentados e mesmo motos ou caminhonetes feitas para esse tipo de condição sofrerão um pouco para avançar. Quando um inimigo ou a tempestade se aproximam, a gente é obrigado a parar no lugar onde está, tendo de acelerar novamente ou gastar bateria extra com o turbo no exato momento em que tudo o que mais queremos é dar o fora dali.

Kojima parece saber disso, tentando compensar tais falhas com a adição de equipamentos que facilitam a vida ou indicações de qual o melhor plano de ação aparecendo sutilmente nas falas dos personagens. O problema é que muitas vezes tais elementos são apresentados em uma interface poluída e cheia de elementos ou são acessíveis por meio de um nó nos dedos, como se os designers quisessem fazer mais do que os botões disponíveis no joystick permitem. É um aspecto complexo como o próprio mundo, é verdade, mas que também acaba dificultando encontrar o dado que o jogador precisa ou a ação que deseja realizar.

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É o tipo de coisa que preenche toda a tela e a enche de letrinhas, quase a transformando em uma planilha de Excel, mas que será ignorada assim que o jogador entender como tudo funciona. Em vez de ler uma parede de texto, ele pode simplesmente ouvir a narração que aparece sempre que uma nova missão é aceita ou um item inédito fica disponível, com a salada de textos apenas fazendo mal à usabilidade geral de Death Stranding.

Quem quiser ler e mergulhar nesse mundo, porém, terá uma quantidade absurda de material. Aos moldes de praticamente todas as obras de Kojima, essa também traz centenas de arquivos, itens coletáveis e linhas de diálogo que contam mais sobre o mundo e podem ser acessados pelo jogador a qualquer momento após a liberação. E-mails estão sempre chegando, assim como os achados de Deadman, Mama (Margaret Qualley), Die Hardman (Tommie Earl Jenkins) e todos os outros ficam plenamente disponíveis para quem quiser se aprofundar, como já era de esperar.

Imersivo e impressionante

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A história de Death Strading também é a jornada do próprio Hideo Kojima, que partiu do fracasso pessoal com a interferência da KONAMI em Metal Gear Solid V e o cancelamento dolorido de Silent Hills para o que, com toda a certeza, é sua obra-prima aqui. Acredite, você não vai se importar tanto com os problemas de usabilidade e jogabilidade diante de tudo o que há para ver, explorar e fazer no título.

São, facilmente, algumas dezenas de horas em um mundo com, literalmente, centenas de missões entre momentos principais e side quests. Há certa morosidade na progressão do enredo, é verdade, e uma repetição incessante de alguns conceitos e discursos de motivação, mas não é como se o título enchesse linguiça. Nada está lá por acaso e há sempre uma conexão clara (ou nem sempre) para todas as coisas que acontecem em Death Stranding. E o jogo está em português, para a alegria dos brasileiros, com dublagem e textos.

Para cada corte de diálogo porque o personagem está falando a mesma coisa pela quinta vez, entretanto, há uma cena impactante, daquela que vai ficar na memória. E, mais uma vez, e nunca será suficiente, há de se enaltecer o universo construído por Hideo Kojima em Death Stranding, que usa seus próprios conceitos surreais para chocar e gerar reações de emoção, ódio e incerteza.

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As metáforas estão em todos os lugares e, pouco a pouco, o jogador vai percebendo que apenas fazer a ligação entre as cidades e os vilarejos deste país pode resolver alguns dos problemas pontuais, mas faz parte de um processo bem mais profundo de abismo social e unificação. Isso sem falar, claro, nos sempre existentes e nem sempre esperados plot twists, com momentos que fazem tudo virar de ponta-cabeça.

Estamos falando de criar pontes em um mundo vazio, que o jogador sempre explorará sozinho e se comunicará com a maior parte de seus agentes por meio de hologramas. Da mesma forma, há a sensação de estar sempre conectado quando notamos que outra pessoa já venceu aquele desafio à frente e deixou dicas ou artigos para serem coletados e ajudar os próximos. Tudo é, ao mesmo tempo, distante e íntimo.

A chuva destrói o que está abaixo dela, mas ao mesmo tempo novas estruturas são construídas, de forma diferente. O caminho para um mesmo lugar nem sempre seguirá as mesmas rotas na medida em que Sam evolui e aprende a lidar com os obstáculos, mas aquela sensação de familiaridade também estará presente simultaneamente, principalmente ao chegarmos em um lugar conhecido após perrengues, quedas, deslizamentos e combates.

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É difícil abraçar o mundo de Death Stranding e todos os seus discursos e metáforas, que dialogarão de maneiras diferentes de acordo com a bagagem carregada por cada jogador. Estes são elementos sobre os quais, na realidade, não podemos falar aqui nem deveríamos, afinal de contas este é um universo para ser vivido e desbravado. Os spoilers, simples revelações de história, não importam tanto quanto o desenrolar desse mundo, que é o verdadeiro motivo que torna o título especial.

Sem coleira e com plena liberdade criativa para fazer o que mais sabe, e ainda fazendo as pazes com o próprio passado, Hideo Kojima entrega aqui uma experiência surpreendente, mais pelo mundo que pelas mecânicas. É uma jornada longa e, muitas vezes, extenuante, mas que nos levará ao cerne de algo que pode parecer incompreensível de começo, mas se prova cada vez mais familiar e reconhecível na medida em que nos envolvemos.

O designer japonês não cria um gênero, como arrogantemente fez questão de falar mais de uma vez, mas sim uma mistura de boas experiências próprias e também do mundo do entretenimento como um todo, junto com um ímpeto por ousar e contar uma história multifacetada que não teme levar o tempo necessário para ser contada. Isso para não dizer escrita, afinal de contas o jogador será parte integrante disso tudo.

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Da mesma forma que as nossas escolhas do passado nos trouxeram para onde estamos hoje, cada entrega feita por Sam leva o mundo adiante e contribui, às vezes mais, às vezes menos, para o castelo de Death Stranding. Há pensamento em cada detalhe e não há nada fora do lugar neste que, sem dúvida nenhuma, é um dos jogos mais ricos e importantes do ano. O hype, mais do que nunca, é real.

O que temos em mãos é algo impressionante e, a seu modo, diferente, ainda que apoiado em alicerces reconhecidos e múltiplas referências. Vamos deixar que o tempo, porém, solidifique o potencial disruptivo e inovador de Death Stranding, pois mesmo após dezenas de horas com ele, ainda há muito mais o que absorver, pensar e, principalmente, mudar.

Death Stranding foi testado em cópia gentilmente cedida ao Canaltech pela Sony.