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Pandelivery | Novo documentário retrata a realidade dos entregadores na pandemia

Por| 01 de Agosto de 2020 às 10h10

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Quantas vidas vale o frete grátis? É com esta questão que o documentário Pandelivery, dirigido por Antônio Matos e Guimel Salgado, traz à tona a realidade dos entregadores por aplicativo em meio à pandemia de COVID-19. Os serviços de entregas são considerados uma atividade essencial e, no atual cenário, é uma das profissões que mais se arrisca, devido ao gigantesco aumento dos pedidos. Mesmo com serviços mais necessários que nunca, os entregadores enfrentam pouca valorização e muitos riscos no trabalho.

Em meados do mês de junho, procuramos a Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos (AMABR) para entender o ponto de vista dos próprios profissionais. Na ocasião, embora os aplicativos tenham defendido a existência do devido suporte aos entregadores, Edgar Francisco da Silva, presidente da AMABR, contou que os mesmos se posicionaram superficialmente para dar uma resposta para a sociedade. Forneceram certa quantidade de álcool em gel, algumas máscaras, certa quantidade de luvas... mas esse processo ocorreu apenas uma vez e não houve reabastecimento dos chamados equipamentos de proteção individual (EPIs). "Ou seja, ficou por conta do entregador e ele não ganha o suficiente para comprar esses itens a toda hora. Logo, muitas vezes ele acaba trabalhando de forma insegura, correndo um grande risco e sendo um vetor de transmissão desse vírus", disse Silva.

Quanto aos cuidados com os motofretistas que testam positivo para COVID-19, o presidente da AMABR afirma que um de seus colegas de profissão não teve ajuda nenhuma. “Mandei mensagem para ele outro dia e ele falou que estava internado no Hospital de Campanha Anhembi SPDM. Tinha ficado três dias em Parelheiros e foi transferido. Ele já estava lá há uma semana, e 70% do pulmão dele foi comprometido, porém não recebeu auxílio nenhum [dos apps]. Ele falou que até comunicou um dos aplicativos, mandou e-mail, mas não recebeu auxílio”.

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Em um dos trailers de Pandelivery, um dos entregadores presentes no documentário apresenta resultado positivo em um teste para COVID-19. O trailer traz trechos de relatos de alguns desses profissionais no contexto da epidemia. Em certo momento, um dos entregadores desabafa sobre a desigualdade que eles enfrentam, bem como o perigo que a desproteção frente ao coronavírus traz: "Os ricos 'se curou' (SIC). E os motoqueiros agora? Vão contaminar todo mundo?". Em outro momento, um dos profissionais toca no assunto da remuneração: "Eu fiz trinta reais. Era para ser trezentos". Confira o trailer:

A obra foi produzida pela produtora Soalma(confira um bate-papo com os dois diretores no final dessa reportagem). Há um curta-metragem que será lançado ainda esse mês, enquanto o documentário, em longa-metragem, será apresentado até o final do ano. "Na maior pandemia deste século, milhares de desempregados estão se tornando entregadores de aplicativo para sobreviver. Submissos a um sistema de exploração, buscam melhores condições de trabalho enquanto lidam com suas duas maiores preocupações: a Covid-19 e a fome", consta a descrição da produção.

"A quarentena escancarou o abismo social. Milhares de pessoas são forçadas a se arriscar diariamente em rotinas que já eram longas e exaustivas antes da pandemia. Com o surto, sua situação torna-se mais difícil, com menos remuneração e déficit em equipamento de segurança e prevenção a doenças. É importante dar visibilidade a essa classe de trabalhadores que começa a engatinhar rumo a uma mobilização global, ao mesmo tempo em que lutam para não se tornar novos vetores de contágio", o site oficial do Pandelivery ainda aponta.

Em conversa com o Canaltech, Guimel Salgado conta de onde veio a ideia de trazer a realidade dos entregadores e fazer um curta e um documentário sobre a categoria: "A ideia nasceu no começo do ano, durante a gravação de uma campanha publicitária. Pedíamos muito delivery durante o processo de produção e acabamos nos perguntando como é a realidade dos trabalhadores. Quando a pandemia chegou no Brasil, não tivemos dúvida: sabíamos que esse setor seria extremamente impactado de diversas formas. No dia seguinte, quando teve o primeiro caso de morte confirmada no Brasil, pegamos a câmera e, devidamente protegidos, fomos às ruas".

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De acordo com o diretor, o curta surgiu por conta da urgência em mostrar essa realidade agora e mobilizar a opinião pública quando os entregadores mais precisam de visibilidade, que é durante a pandemia. Já o longa-metragem aprofunda os assuntos abordados no curta, além de trazer novos questionamentos e denúncias. "Nossa pesquisa tem se aprofundado tanto que cogitamos inclusive o transformar o longa em uma série", afirma.

A importância de mostrar essa realidade

Sobre a importância de mostrar para as pessoas o que está acontecendo com os entregadores, Guimel Salgado aponta: "Os entregadores eram essenciais antes mesmo da pandemia, e as pessoas não sabem como funciona essa 'indústria'. Muitos entregadores entram para os aplicativos porque não têm nenhuma outra renda (principalmente durante a quarentena). Com os bloqueios, muitos acabam endividados; pedidos cancelados precisam ser devolvidos em uma central ou geram dívidas, fora todos os riscos que eles correm em cima de uma moto em uma cidade como São Paulo durante uma pandemia. É importante trazer essa realidade a tona".

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Guimel relata que foram realizadas diversas entrevistas em campo, e então a equipe elegeu alguns entregadores para acompanhar o cotidiano. Para a realização da obra, mais de 50 deles, da cidade de São Paulo, foram ouvidos. "O processo é completamente imprevisível. As coisas mudam do dia pra noite", descreve Matos. Além de conversar com os entregadores, o codiretor conta que, desde a primeira semana da quarentena, a equipe tentou entrar em contato e obter respostas dos aplicativos. "Enviamos diversas perguntas e tentamos por meses algum tipo de retorno. Ainda não tivemos resposta de nenhuma das empresas".

Dentre as condições dos entregadores, a que chamou mais atenção durante o processo de produção do documentário foi o trabalho com a utilização de bicicletas. "A condição de trabalho dos entregadores de bike é exaustiva. Alguns deles pedalam 40km todo dia só para chegar ao trabalho e voltar para casa. Quem aguentaria uma rotina de trabalho de 16 horas por dia?", questionam os diretores.

Paralelo a isso, questionado em relação ao que as pessoas podem fazer para ajudar os entregadores, o diretor expõe: "As pessoas podem ajudar de diversas maneiras, mas achamos importante que as elas conheçam a realidade deste trabalho e apoiem suas pautas. Com engajamento popular, esses questionamentos ganham mais força".

A greve

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No início de julho (mais precisamente no dia 1º mesmo), houve uma paralisação dos entregadores de aplicativos, atingindo diversas cidades do Brasil nas quais os apps atuam. O movimento - que leva o nome de #BrequeDosApps - não conta uma liderança centralizada, mas conquistou a adesão em algumas das maiores capitais do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Recife e Belo Horizonte, além de cidades em outros países, como Colômbia, Argentina e Chile.

Questionado se a equipe compareceu nessa greve, o diretor de Pandelivery conta: "Cobrimos diversas greves dos entregadores, incluindo a do dia 1 de julho. Sentimos que o movimento está ganhando força e as manifestações estão ficando maiores". A próxima greve dos entregadores aconteceu no último dia 25 de julho, em um sábado, um dos dias de maior movimento entre restaurantes e outros estabelecimentos. "Estamos vendo o nascimento de um movimento que pode se tornar muito importante no futuro", completam os diretores.

Bate-bola: Guimel Salgado e António Matos, diretores de Pandelivery

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Saco de lenha de 60kg, dezenas de quilômetros pedalados, doenças...os diretores de Pandelivery, Guimel Salgado e António Matos falam sobre os perrengues dos entregadores, o que mais chamou a atenção na rotina deles e até se eles usam os apps de entrega. Confira no nosso bate-papo logo abaixo:


Canaltech - Vocês acompanharam uma série de entregadores durante o documentário. Como é a realidade deles no dia a dia das entregas?

Guimel Salgado e António Matos: As rotinas de trabalho de 16 horas são comuns. Os entregadores geralmente moram bem longe dos pontos de trabalho, então os bikeboys sofrem ainda mais, pedalando até 20km todo dia para chegar aos seus pontos de trabalho.

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Para não perder corridas, evitam usar o banheiro e comem sanduíches e salgados rápidos. São comuns problemas de coluna devido ao peso, complicações na bexiga, no rim e gastrites. Também costumam ficar aglomerados nos pontos de retiradas (supermercados e restaurantes com grande movimento), expondo-se a mais riscos de se contaminarem pela Covid-19. Alguns dos apps também usam sistemas de pontuação, o que faz com que entregadores durmam na rua para não prejudicar seu score e serem bloqueados em determinadas regiões de entrega.

CT - Quais foram as histórias mais surreais que eles contaram para vocês ou os piores perrengues? O que mais chamou a sua atenção?

G.M e A.M.: Temos histórias de entregadores que já tiveram de entregar 60 quilos de lenha para um cliente. Trabalhar sem almoçar ou jantar é comum. Ouvimos a frase "trabalhamos com fome carregando comida nas costas" de diversos entrevistados. Temos vídeos de entregadores de bike andando na rua puxando carrinhos de compras de supermercado, porque os pedidos eram pesados demais para carregar na mochila de isopor.

CT - Qual é o perfil que vocês observaram dos entregadores? Com o que eles sonham ou até mesmo, eles gostam da profissão de entregador ou é algo apenas temporário, para sobreviver?

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G.M e A.M.: Os entregadores têm perfis variados, desde os que acreditam serem empreendedores e que vão mudar suas vidas fazendo entregas aos os que assumem que essa realidade é a única que eles têm no momento para levar comida para casa. Muitos querem financiar faculdades para si ou para os filhos. Independente dos posicionamentos políticos, todos têm um desejo de melhorar de vida.

CT - Durante a primeira paralisação, vocês notaram se houve algum tipo de ameaça de represália por parte dos apps ou das OLs?

G.M e A.M.: Estamos em diversos destes grupos de WhatsApp e recebemos informações tanto de ameaças de represálias vindas de OLs (Operadores Logísticos) quanto de entregadores de aplicativo que foram bloqueados logo após participarem de protestos. Há também muito medo do monitoramento de geolocalização: "Os aplicativos sempre sabem onde nós estamos” é uma frase que já ouvimos de diversos entregadores.

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CT - Vocês estiveram também nas carreatas durante a paralisação. Qual era o sentimento geral dos entregadores, como se desenrolaram os protestos? Eles têm esperança de que esse movimento possa melhorar as condições trabalhistas deles?

G.M e A.M.: Eles acreditam que essa união da classe, mesmo com reivindicações diferentes, pode melhorar sim a situação na qual eles se encontram. Os entregadores estão entendendo sua nova importância nesta quarentena e percebem que a opinião popular está começando a apoiá-los, mas o sentimento geral é de que a pandemia piorou muito condições de trabalho e de salário que já eram precárias e que essa situação ainda está longe de mudar.

CT - E qual a sua opinião pessoal sobre os aplicativos como iFood, Rappi e outros? É uma ótima ideia mal executada ou um negócio fadado a favorecer apenas um dos lados?

G.M e A.M.: Nosso uso pessoal destes apps desde seu surgimento foi um dos motivos que nos fez querer entender melhor essa realidade e fazer este documentário. É uma nova forma de trabalho que veio para ficar e pode ser muito positiva, mas se não houver regulamentação e fiscalização, a corda estoura pro lado mais fraco, que é o dos entregadores. Não é coincidência que o número de acidentes de moto aumentou em 90% durante a pandemia, mesmo com menos carros na rua.

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A história dos direitos trabalhistas mostra que eles são conquistas que nascem através de lutas e reivindicações. Não vai ser diferente com os aplicativos. Eles vieram para ficar, assim como alguns direitos básicos pelos quais esses trabalhadores lutam.

CT - Como os entregadores lidavam com o medo de contágio do coronavirus? Vocês souberam de algum deles que foi contaminado durante as entregas ou acabou internado?

G.M e A.M.: Este é um ponto muito importante e sensível do filme. Os trabalhadores estão extremamente vulneráveis a contaminação. Não só estão com medo de se contaminar, mas também de trazer o vírus para suas famílias e comunidades. Trabalhar com entregas na pandemia também é a única opção para grande parte da população pagar suas contas (“o que eu tenho pra hoje é me arriscar”, “as contas ainda chegam”…),

A distribuição de máscaras e álcool em gel por parte dos apps, alardeada em comerciais na internet e no horário nobre, demorou meses pra se iniciar e ainda é executada de maneira insuficiente. Um dos nossos entrevistados resumiu bem a situação: "Nós estamos encurralados”. Não só soubemos de casos de contaminação como entrevistamos entregadores contaminados e que passaram o vírus para suas famílias.