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Crítica | Raiva deixa a sensação de que poderia ser extraordinário

Por| 06 de Fevereiro de 2021 às 10h00

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A premissa é suficiente para Raiva iniciar uma narrativa desesperançosa na qual o fim trágico é irreversível. O filme, adaptado do romance de Manuel da Fonseca por Fátima Ribeiro e Sérgio Tréfaut, é quase minimalista em suas abordagens. Dessa maneira, cria um universo próprio muito fechado em si mesmo, sem arrodeios, direto ao ponto, e, por tudo isso, dolorido.

Os pobres nascem pobres.Os ricos nascem ricos.Os pobres morrem pobres.Os ricos morrem ricos.
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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

A crueldade da realidade

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Raiva é um trabalho curioso, aliás. Tréfaut (de Treblinka, 2016) parece não estar interessado em contar uma história em si, mas em passar a sensação dos acontecimentos vividos por Palma (Hugo Bentes) e sua família. Ao iniciar com o clímax, o diretor luso-brasileiro revela o fim de tudo e, sem mistério, amarra a impossibilidade de mudanças à própria estrutura do filme.

Isso porque as sequências seguintes passam a ser uma crescente justificativa do prólogo. Nesse sentido, a própria escolha pelo preto e branco pode denunciar que tudo já é conhecido, que o mundo é daquele jeito, que as oportunidades para os pobres são totalmente opostas àquelas que têm os ricos. É uma visão que não tem medo de sua própria crueldade e que, infelizmente (para a realidade), pode ser bem difícil de contradizer.

Tudo, por sinal, acaba por se transformar em um ciclo: iniciando com o fim e voltando ao passado até o encontro desse início, faz-se um movimento de rotação, girando em volta de si para chegar ao resultado que, de fato, é o futuro da história contada — mas que foi apresentado primeiro, tornando-se passado para o espectador. Isso que pode ser confuso enquanto descrição é muito natural em Raiva, o que só agiganta a visão de Tréfaut sobre o que é apresentado.

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O resto do lombo

Por outro lado, a paciência da direção no claro planejamento de decupagem talvez não encontre a melhor das alianças no ritmo empregado. Se a história em si não é o foco, as sensações que vez ou outra tentam bater forte não encontram respiro para isso. Muitos dos planos propostos pelo diretor são poderosos, arremessando personagens à solidão da miséria e a dores, na prática, estéticas. No entanto, são pouco aproveitados pela cadência dada pela montagem de Karen Harley (de Democracia em Vertigem).

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Em uma das cenas, por exemplo, a família protagonista mata a fome e, à porta da casa, uma pedinte com um bebê no colo implora por algo para comer: "Deem-me qualquer coisa. Só um bocado de pão". Ali, Tréfaut expõe a desconhecida à distância, do lado de fora e vista por meio da porta entreaberta. Não há proximidade. Assim, por mais que exista esse distanciamento inquebrável e mesmo que sua própria família esteja passando por tantas dificuldades, Palma pede para que a esposa dê "o resto do lombo".

Tudo, porém, acontece sem que existam os ditos respiros. Dessa maneira, a beleza da força destruidora de cada cena, de cada acontecimento, fica restrita ao momento. Raiva, portanto, perde a oportunidade de ecoar por muito mais tempo, de fazer seu público sentir na própria pele, mesmo que apenas emocionalmente, a sua história. A potência de suas prováveis referências — que podem ir da simbologia afetiva do tailandês Apichatpong Weerasethakul à mais óbvia firmeza do húngaro Béla Tarr — perdem-se, interessantemente, na curta duração.

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Claro que é uma sensação tão subjetiva quanto pessoal, mas, com a história tão clara e tão evidente desde a abertura, restava ao filme um trato mais pretensioso (no melhor sentido). Raiva, em termos musicais, teria mais energia se regido para um andamento lento, um Adagio. Ao optar por um ritmo indeciso, sem compasso e longe do uso de um metrônomo, tudo acaba como começou: dolorido, com um fim trágico irreversível — que, após os curtos 84 minutos de duração, pode se referir, com exagero, ao próprio resultado do filme. Que, na verdade, é muito honesto... com a sensação de que poderia ser extraordinário.

Raiva está disponível no Amazon Prime Video.

Crítica dedicada ao amigo Raildon Lucena.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.