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Crítica | Mau-olhado é mais um acerto da Blumhouse que aborda temática urgente

Por| 17 de Outubro de 2020 às 22h00

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Amazon Prime Video / Blumhouse
Amazon Prime Video / Blumhouse

Tem sido um discurso recorrente meu o de que os filmes de terror que têm surgido, sobretudo este ano, estão bastante engajados, além de social e psicologicamente responsáveis, o que é uma tremenda revolução acontecendo diante dos nossos olhos. Mau-olhado (Evil Eye), outro dos quatro primeiros filmes da série temática de terror Welcome to the Blumhouse, não fica de fora desse movimento. E é muito sagaz no que faz.

O cinema depende da identificação e o terror, para nos amedrontar profundamente, precisa buscar essa identificação que, claro, jamais será homogênea e comum a todos os espectadores. Alguns temas são mais sensíveis a algumas pessoas e, para quem se encontra fora do público alvo principal da identificação, há ainda a possibilidade de usar a empatia para entender a profundidade desse terror.

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Mau-olhado não só é certeiro ao ser um terror que mistura elementos sobrenaturais através de crenças culturais bastante tradicionais, mas também porque finca um pé no chão ao invocar o terror mais factual do assassino de filmes slasher, com direito a close-up da faca de cozinha ensanguentada. Com isso, os diretores Elan Dassani e Rajeev Dassani ressaltam que, apesar de o terror estar em um elemento metafísico, a referência dessa metáfora é real e, assim como o outro sucesso da Blumhouse, O Homem Invisível, o chamado é para tornar ainda mais visível a violência sofrida pelas mulheres.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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O medo

Mau-olhado não tem interesse em ser um terror muito hermético, com mensagens importantíssimas que só podem ser acessadas por um pequeno grupo de curiosos. Aqui, a metáfora é clara. O terror é um gênero bastante popular e seu uso para representar mudanças sociais necessárias não vêm de hoje. A cultura indiana, de sua parte, tem uma complexa mistura de questões religiosas e sociais, marcada ainda pela noção de karma, o efeito de alguma ação passada, inclusive de vidas passadas, que ecoa através das encarnações como forma de punição a ser sofrida e pagamento a ser realizado, e do qual o indivíduo só se liberta através de boas ações.

Assim, cria-se também uma organização social em que os eventos sofridos são justificados por atos errados de vidas passadas, um fardo que a pessoa é obrigada a carregar: o sofrimento passa a ser aceito como castigo e não como algo contra o qual é preciso lutar. No caso de Mau-olhado, o karma é a perseguição que a linhagem de Usha (Sarita Choudhury) é obrigada a enfrentar. Em meados do filme, Usha admite que a filha é, de fato, uma mulher diferente, independente e consciente, mas que, mesmo assim, nada mudou da sua geração para a da filha.

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Esse é um dos momentos mais claros e descarados do roteiro: a mulher conquistou lugares de visibilidade ao longo do tempo, mas mesmo isso não mudou sua condição de vítima de relacionamentos abusivos. Assim, Mau-olhado não só declara a evolução rumo à equidade das mulheres indianas e de todo o mundo, como também derruba o mito de que mulheres entendidas socialmente como “bem-sucedidas” não são alvo dos mesmos problemas, no caso, a possessividade masculina.

O roteiro também é excepcional ao inserir o personagem Krishnan (Bernard White), que funciona como o contraponto, o exemplo de um relacionamento saudável, além de ser a voz sensata do público que, na mente, tenta mediar a situação complicada e duplamente compreensível que se instaura entre mãe e filha. É interessante, ainda, como as atitudes de uma maternidade tóxica são explicadas na figura de uma mulher que viveu um relacionamento abusivo e vive o medo de que a filha passe pelo mesmo.

A força

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Mau-olhado é um retrato hiper-realista disfarçado de ficção, que trabalha com responsabilidade duas personagens femininas que se encontram diante de um mesmo desafio, a luta contra os relacionamentos abusivos, o que é particularmente caro à Índia, um dos lugares que têm um histórico assustador de abuso, físico e psicológico, contra mulheres. A ambientação nos EUA, embora seja uma estratégia para conquistar os espectadores de língua inglesa pouco afeiçoados a legendas, ajuda a ampliar o alcance da mensagem ao mostrar que o “karma” é comum a mulheres de qualquer lugar, inclusive às “americanas”.

O encerramento do filme, no entanto, não rejeita o sobrenatural, mas insere uma mensagem: “Digamos que ele continue voltando. O que você diria à sua filha? Homens assim sempre existirão. Então, você ensinará sua filha e sua filha ensinará sua neta, que nada disso é culpa delas. E vocês o enfrentarão juntas.” É a recusa velada do karma cultural e um chamado coletivo. Um momento de sororidade quase tão poderoso quanto o final da segunda temporada de Sex Education.

O karma ficcional, no entanto, retorna em um novo bebê, com gostinho de uma sequência que, espero, nunca exista. O filme, embora dê abertura para continuidade, não parece ter potência para uma série mais ou menos slasher e que propaga a reprodução de padrões. O eterno retorno do namorado possessivo, parece dizer o contrário, se não esquecermos o que nos disse Usha: se o padrão se repete, devemos aprender com ele e ensinar as futuras gerações.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.