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Crítica | Rush: No Limite da Emoção e o abraço eterno de Niki Lauda

Por| 21 de Maio de 2019 às 13h35

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California Filmes
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Muitas vezes, nerd é aquela pessoa que abdica de atividades popularmente prazerosas, como sentar em um bar para conversar com amigos e socializar em maior escala. Nerd é, também, quem costuma se dedicar a algum tipo de hobby antissocial, evitando se integrar a grupos.

A palavra, que hoje pode ser utilizada tanto como sinônimo quanto como adjetivo, surgiu na década de 1950 e é proveniente do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da companhia canadense Northern Eletric. Em sua língua original: Northern Eletric Research and Development. Os profissionais desse departamento dedicavam a maior parte do tempo justamente ao trabalho, às pesquisas, tornando-se praticamente alheios às suas próprias vidas pessoais. Eram conhecidos, ainda, pela genialidade naquilo em que se empenhavam.

Dentro desse espectro, Niki Lauda era um nerd. Enquanto aos 12 anos sua maior alegria era ser uma espécie de manobrista mirim, estacionando os carros de quem chegava à mansão da família, seu primeiro carro lhe serviu como escola de mecânica. Quando a família pediu que Lauda se dedicasse aos negócios, era tarde demais: ele já tinha adquirido um Fórmula 3 e um pequeno caminhão e estava disposto a rodar a Europa entre uma pista e outra.

Focado, determinado a melhorar sempre, Lauda acreditava que o treino constante era fundamental, visto que o seu talento natural se provara mediano. Todo o esforço e essa crença se provariam alguns anos a frente, durante a sua carreira vitoriosa na Fórmula 1 – que o fez ser considerado um dos melhores da história (algo que permanece) –, mas, especialmente, por meio das disputas com o seu maior rival, o talentoso James Hunt.

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Passados tantos anos, a Fórmula 1, obviamente, não é a mesma. E nem é necessário citar a segurança como diferencial para saber que, hoje, os pilotos guiam com uma tranquilidade maior. Provavelmente, se pilotasse hoje, Lauda cruzaria a linha nerd e seria considerado um geek, um tecnonerd, afeiçoado à tecnologia e à informática, dados os cruzamentos existentes entre essa área da ciência e a Fórmula 1. Com a exceção de danos maiores, abastecimento ou troca de pneus, quase tudo pode ser ajustado de forma precisa e a qualquer momento por meio dos computadores de bordo ou de dentro da cabine da equipe, sem que seja necessário parar o carro durante uma corrida.

Fórmula Freud

  • Id: Aquilo que é inerente ao indivíduo, nascido com ele, consiste nos desejos e vontades mais primitivas, é o instinto, a impulsividade.
  • Ego: Surge a partir da interação do ser humano com a sua realidade, adequando os seus instintos primitivos (o Id) com o ambiente em que vive, é o equilíbrio, a racionalidade.
  • Superego: Tudo o que é relacionado aos valores morais e aos ideais culturais. É o “conselheiro” do ego, a moralidade.
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No cenário de Lauda, tão diferente do atual, esse esporte perigoso (muito mais à época) vivia a sua era de ouro e, assim como na história do garimpo desse metal, mortes eram, se não frequentes, uma sujeição comum (ou quase isso). Com esse pano de fundo, o roteirista Peter Morgan, parceiro do diretor Ron Howard no excelente Frost/Nixon (de 2008), escreveu uma narrativa que vai além do bom material original. Revivendo e reavivando o que, um dia, fez com que o automobilismo se tornasse uma paixão para tantos, Morgan centrou-se na rivalidade entre dois pilotos excepcionais e de índoles imensamente diferentes. Rush: No Limite da Emoção é o resultado de um trabalho dedicado e minucioso que faria Freud ficar orgulhoso ao identificar, em dois homens, separadamente e de forma tão clara, os conceitos de id e superego e, ainda, perceber que, nos detalhes, ambos se entregavam ao ego com a mesma natureza, a humana.

Chris Hemsworth, assim, encontra, em sua personagem, o piloto inconsequente e agressivo James Hunt, a sua primeira grande chance de provar ter força dramática. Confiante e sem fazer esforço para demonstrar carisma, Hemsworth constrói uma personalidade cheia de vaidades e de falhas, sem subtrair o fascínio do público. Hunt, aqui, revela-se compassivo sem abandonar o instinto, claramente decaindo ao id (o que se ratifica pela sua força ao permanecer em uma prova mesmo com a mão ferida devido à quebra da alavanca de câmbio).

Enquanto isso, Daniel Brühl sugere, em detalhes, com os olhares rápidos e pouco fixos (apesar da personalidade centrada) e dos sorrisos apertados, todo o desconforto do início de carreira do Niki Lauda, em boa parte por ter iniciado os trabalhos na categoria a partir de um investimento próprio. Mas é a evolução do personagem – que encontra o clímax após voltar às pistas (passando por um tratamento complicado e doloroso devido ao acidente que queimou boa parte do seu corpo e dos seus pulmões) – que evidencia a excepcional caracterização de Brühl e a identificação com o conceito de superego (um “defensor da luta em busca da perfeição”, nas palavras do próprio Freud).

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E vai mais longe

O retorno de Lauda às pistas inicia o duelo do ego pelos dois. E se ambos permitiam que seus egos (no popular dessa vez) os dominassem e os fizessem agir por instinto (Hunt) ou extrema moralidade (Lauda), agora eles iniciam um processo de busca pelo equilíbrio ou igualdade que é comprovado pelo desejo de ter o mesmo jogo de pneus ou, ainda (e mais fortes), pela surra dada por Hunt em um repórter que fora inconveniente com o rival e pelo sentimento sóbrio e pacífico expressado por Lauda após o título do seu maior adversário. Ações (e voltamos ao ego – o popular) que não foram confessadas.

Não é justo, porém, destacar os desempenhos dos protagonistas e deixar de citar a romena Alexandra Maria Lara, intérprete de Marlene (a esposa de Niki Lauda). Com poucas palavras e sorrisos reveladores, seu olhar paterno e materno (conveniente – Lauda se distanciou da família para viver a sua aspiração) e sua expressão de devoção ao marido (sem que isso a qualifique como subordinada – aliás, o que acontece é, justamente, o contrário – e em nenhum momento são necessárias palavras impositivas para isso) é o que, em se falando de minimalismo em atuações, pode impressionar.

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Todo esse desempenho do elenco, desse modo, só é possível devido ao citado texto de Morgan e, certamente, ao diretor Ron Howard, que não se atém às suas obras anteriores (algumas excepcionais, como A Luta pela Esperança) e desenvolve uma composição visual, ao lado do experiente diretor de fotografia Anthony Dod Mantle (que tem feito trabalhos incríveis desde Extermínio – de 2002), como nunca o fez anteriormente. Jogando com as cores – em especial a vermelha, para indicar uma hostilidade psicológica do porvir, ou a violência física, como ao ressaltar o encarnado da Ferrari antes do fatídico acidente – e trabalhando os closes-in no desenvolvimento dos personagens, Howard é preciso. É interessante perceber, nesse sentido, como a imagem se aproxima lentamente, durante todo o filme, dos rostos dos personagens e, também, como isso se intensifica em momentos mais fortes ou de maior intimidade.

Um abraço eterno e um beijo impulsivo

Howard, ainda, é de uma sensibilidade artística enorme ao fazer ligações entre os pés dos personagens e as rodas dos seus carros. Se é comum a câmera percorrer dos pés à cabeça de um personagem enquanto ele caminha, para indicar a segurança nos passos (quando são firmes) ou, justamente, o contrário (quando o caminhar é desnorteado), o diretor opta por integrar homem e máquina em uma metáfora visual absolutamente genial: no retorno de Lauda às pistas, após algum tempo de readaptação dele dentro do cockpit, o diretor manifesta uma investida – tão comum dos pés à cabeça – dos pneus ao capacete, em plena corrida, assim que o piloto se reacende e inicia uma reação fantástica. Essa escolha confirma o poder do carro por ser guiado por alguém imediatamente muito mais maduro e confiante, sem aquele desconforto inicial, transformando máquina e homem em uma só criatura.

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Afora, a trilha sonora de Hans Zimmer é de muita inteligência ao não criar um tema melódico expositivo, optando por uma organização harmônica delineadora. Firme e decisiva, mas sem vontade de voto a favor ou contra qualquer figura dramática ou situação, a música deixa abertura para aquela que soa através dos carros. Zimmer, dessa maneira, proporciona também uma rima sonora inteligente com um dos diálogos, que ressalta a sonoridade dos motores.

Rush: No Limite da Emoção é daqueles filmes completos que merecem ser lembrados sempre. Cheias de vida, as pouco mais de duas horas, por mais que sejam de uma ficção, comprovam que Niki Lauda – o primeiro e maior nerd a ingressar na Fórmula 1 – foi um dos grandes pilotos que já passaram pela categoria. De manobrista mirim e mecânico autodidata a tricampeão da Fórmula 1, o menino sem tanto talento soube focar sua riqueza naquilo que mais amava. No fim de tudo, fica exposta a dúvida de quantos Laudas existem por aí, apenas aguardando a chance de poder lutar pelo que amam. É quando um filme consegue ser tão intenso como entretenimento e tão legítimo quanto arte e provocação que ele consegue abraçar o espectador com o maior carinho possível. Rush: No Limite da Emoção é esse abraço eterno de Niki Lauda e recheado de um impulsivo beijo de James Hunt... mas centrado na vida.