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Crítica | Refém do Jogo: nada e ecos de qualquer coisa

Por| 18 de Setembro de 2019 às 12h54

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Quando, há pouco mais de um ano, escrevi sobre Rota de Fuga 2: Hades (de Steven C. Miller, 2018), usei de ironia para destacar os tantos aspectos negativos do filme. Lembro de ter sido um dos poucos momentos, em 10 anos de crítica (hoje 11), em que não deu para segurar o forninho. Resultado: no lugar de tentar encontrar elementos que corroborassem a existência daquele filme, traços que me permitissem prolongar a válida experiência do leitor que assistira ao filme, chutei o pau da barraca na tentativa de, pelo menos, ceder a minha visão.

Foi como embarcar em uma viagem sem volta ao submundo das mentes criativas, um submundo formado por nada e ecos de qualquer coisa. Desde então, com a missão de escrever a respeito, não assisti a um filme sequer que se aproximasse daquele. E passei por dolorosos momentos com Próxima Parada: Apocalipsee The Silence.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Viscoso, mas... não

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Eis que Refém do Jogo (disponível na plataforma de streaming do Telecine) abraçou-me bem apertado e sussurrou em meu ouvido: Bem-vindo de volta ao inferno. E, se nas produções anteriores do mundo inferior, esse abraço tardou ao menos cinco ou 10 minutos para chegar, aqui a coisa é escancarada. Desde o início, a direção de Scott Mann (de O Sequestro do Ônibus 657, 2015) parece não ter noção do que fazer com os planos. São tomadas e tomadas tão aleatórias que me fizeram pesquisar mais de uma vez para escrever, à procura de entender a linguagem utilizada. O problema é que não há linguagem.

Mann dá a impressão de jogar com os ângulos para atordoar o espectador e dar alguma versatilidade ao seu trabalho. Auxiliado pela montagem de Robert Hall (de O Filho de Deus), o diretor ergue um filme que mais parece uma vitamina de bile, com tantos planos e ângulos enfileirados sem intenção de ceder um resultado minimamente aproveitável, formando uma substância viscosa, entendível até, mas talvez sem condição alguma de ser engolida.

E isso é uma conclusão extraída dos primeiros minutos, com Michael (Dave Bautista) aparecendo na casa da sobrinha Danni (Lara Peake) com ingressos para convidá-la a um jogo decisivo entre West Ham United e Dinamo Moscou. Como se não bastasse a óbvia interação do brutamontes de bom coração que surge para salvar a mocinha de um castigo – logo quando ela estava fugindo de casa para encontrar o crush –, a exposição dos diálogos chega a ser dolorosa. Isso porque, ao mesmo tempo em que Michael conversa com a jovem de um jeito paternal sem naturalidade alguma – em uma tentativa de causar identificação com o público que pode ser risível –, tudo surge claramente esquematizado, dentro de uma receita tão difícil quanto ferver água.

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Quero ser Idris Elba

Mas há pontos que até tentam dar gosto a essa sopa ou chá de coisa alguma; o problema é que esses detalhes acabam saindo inteiramente do gênero pretendido e da pretensa seriedade do filme. Assim, é quando Refém do Jogo faz rir que ele funciona melhor, porque, pelo menos, causou uma sensação diferente da vergonha alheia. É verdade que se trata de comédia involuntária – dada a sisudez da pegada de Mann –, o que acaba por ser tão negativo quanto o desejo de ser dramático.

Um bom exemplo dessa singularidade é o russo com feições graves que, por meio de um diálogo mais raso que tampa de vaso sanitário, diz que se transformou, por meio de uma processo de cirurgia plástica, em um galã irlandês (Pierce Brosnan). Nesse momento, por alguns segundos – e ao mesmo tempo em que eu ria –, cheguei a cogitar procurar a pessoa responsável pela cirurgia para perguntar sobre a possibilidade de me transformar em Idris Elba, Chris Evans ou Emily Blunt. Simultaneamente, lembrei do Ken Humano e desisti dos meus pensamentos fantasiosos.

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É justamente aí que Refém do Jogo tropeça gloriosamente: se ao menos buscasse o impossível de maneira descarada – como o faz Arranha-Céu: Coragem Sem Limite (de Rawson Marshall Thurber, 2018) –, se transparecesse despretensão e não se levasse a sério, o filme teria alguma chance de se sair simpático. Poderia, por outro lado, hiperbolizar o absurdo como o excepcional A Outra Face (de John Woo, 1997), mas não... o foco é outro. É ser sério de um jeito birrento: não tenho nada a dizer, então vou gritar para ver se me escutam. Acaba, dessa forma, por jogar no lixo qualquer busca pela criação de um universo próprio e toda chance de ceder verossimilhança tanto fantasiosa quanto real.

E, nessa gritaria, a tríade formada por roteiro (de Jonathan Frank, David T. Lynch e Keith Lynch – os três estreando em um longa-metragem), direção e montagem parece comparar a gravidade de quilos e mais quilos de explosivos prestes a matar milhares de torcedores com lances de um jogo de futebol. Entendo a paixão pelo futebol, respeito e inclusive sou torcedor (sofredor) de um time que hoje está na Série B do nosso campeonato nacional, mas é de um pensamento quase sociopata esquematizar essa relação. A cada cena de ação, lances aleatórios do jogo são mostrados como se traçassem um paralelo entre a tensão das mortes iminentes e um drible bem-sucedido. Um gol do time local, inclusive, é de uma rima doentia com a possibilidade de efetivação do atentado – mas, nesse caso, é a torcida que explode em festa.

Destronado

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Pode existir, em contrapartida, uma tentativa de dizer que há uma perspectiva de caos muito perto de toda felicidade e euforia, uma espécie de crítica social. Mas deve ser muita bondade minha (que já fui chamado de bonzinho mais de uma vez) procurar esse ponto de vista em uma produção que, claramente, não tem a menor ideia de onde está saindo (consciência do seu próprio gênero – a ação – não existe), por onde está caminhando (se houver uma expressão hipérbole para previsibilidade e clichê ela se encaixa aqui) e onde quer chegar (porque chega a lugar nenhum).

Refém do Jogo, pelo menos (lá vem o eu bonzinho), conta com o sempre esforçado Bautista, uma mocinha (a Danni) em perigo dando a volta por cima e surrando um sujeito otário (Brandon, interpretado por Brian Gordon), um carismático coadjuvante (Faisal, por Amit Shah – que grita por Alá em uma cena preconceituosa e vergonhosa) e uma cena agoniante de finalização com óleo quente (bem previsível) com participação do gigante Vlad (Martyn Ford) – fisiculturista e, mais recentemente, lutador de MMA, um sujeito com mais de dois milhões de seguidores no Instagram.

A verdade é que Rota de Fuga 2: Hades, que era meu auge de sofrimento, hoje, está destronado. Claro que já assisti a filmes ainda mais dolorosos, mas não sabendo que o sofrimento seria prolongado pela oportunidade deliciosa de escrever sobre. Aquele filme protagonizado por Sylvester Stallone, pelo menos, não era socialmente ofensivo, por isso a condução daria certo nas mãos, ou melhor, na tromba de Suda. Para Refém do Jogo, o que resta é a lamentação boba das quase duas horas perdidas, que podem até ser divertidas, mas somente se há uma boa companhia para 104 minutos de quase whitetorture.

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Refém do Jogo pode ser assistido pelos assinantes do serviço de streaming do Telecine.