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Crítica | O Menino que Descobriu o Vento: por mais que seja uma chama

Por| 04 de Maio de 2019 às 13h05

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Netflix
Netflix

Existem filmes que são uma tempestade de entretenimento. Por mais que tenham subtextos – e alguns sejam até óbvios –, a camada mais clara é da distração, da diversão, do tempo bem gasto para dar uma sacudida serelepe na mente e, de repente, elevar o nível de adrenalina. Jogador Nº 1 e Missão: Impossível – Efeito Fallout são exemplos recentes (entre tantos outros) desse cinema ágil e pronto para sacudir os neurotransmissores e elevar os batimentos cardíacos.

Outras produções baseiam-se em elementos opostos, não são realizadas visando a distração e a diversão alcançada por elas é exatamente contrária. Claro que o entretenimento permanece, mas não como obrigação. É um limite muito tênue: o cinema, como arte que é, não tem a obrigação de entreter, mas, se a proposta é esta, torna-se um dever a ser cumprido.

Cuidado! A partir daqui esta crítica pode conter spoilers!

O trabalho invisível e os elementos universais

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O Menino que Descobriu o Vento (disponível na Netflix), dirigido pelo estreante na função em um longa-metragem Chiwetel Ejiofor (indicado ao Oscar de Melhor Ator por 12 Anos de Escravidão), parece, inicialmente, encaixar-se muito no segundo molde. Seus minutos introdutórios, nitidamente sem sentir o peso da busca por entretenimento, demonstra uma paciência enorme do diretor na inserção dos elementos que viriam a dar profundidade ao trabalho. E é uma calma acertada. Ejiofor dirige como se fosse o próprio vento, como um sopro que vai revelando a história. Seu trabalho é invisível, mas, ao mesmo tempo, cheio de personalidade.

Por outro lado, trata-se de um esforço um tanto quanto seguro. Isso porque há uma certa facilidade em cativar o público através de uma história dramática baseada em fatos protagonizada por uma criança (ou, no caso, um pré-adolescente). Felizmente, Ejiofor não se limita ao drama pelo drama e, aos poucos, insere elementos praticamente universais, como a honra, a família, a luta por direitos, a política e algumas das diferentes e mais fortes formas de amar.

O roteiro adaptado (escrito pelo próprio Ejiofor), nesse último ponto, é tão incisivo quanto sensível, mas igualmente sem jamais pender para qualquer aspecto melodramático. Assim, enquanto Trywell (Ejiofor, o pai) luta com sua alma, enfrentando a fome e o peso de ser um pai como poucos, o amor de William (Maxwell Simba, o filho – o protagonista) vai ao encontro dos estudos, buscando nestes a resolução para a vida de sua família e de toda uma comunidade. Mas é o amor que sai dos olhos e dos dentes cerrados de Agnes (Aïssa Maïga, a mãe) e a força frágil da jovem Annie (Lily Banda, a filha) que mais se destacam.

Enquanto a mãe tem sua mais profunda entrega quando, ao ver Annie surtar com medo da fome, diz – de uma forma que nem a filha e nem o público deve ter coragem de duvidar (mérito total da excepcional Maïga) – que cortaria o próprio braço para alimentá-la, a filha dá a sua declaração de amor de forma muda: indo contra si e contra quase todos, ela acredita no poder do irmão e deixa uma boca a menos para alimentar.

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Um pouco de mim

Carregando um pouco para o privado, percebo, ao escrever a crítica, que talvez O Menino que Descobriu o Vento tenha me tocado mais do que o normal. Meu pai passou três anos pintando as paredes e trocando as telhas de uma escola para eu poder estudar o Ensino Médio com qualidade e ter mais chances no extinto vestibular federal; minha mãe, durante a maior parte de minha infância, só me via uma vez por semana porque era professora em outro estado para poder colocar o que comer em nossa mesa. Acaba que, como William, eu sou um privilegiado. Não por ter nascido em família abastada, mas por ter tido a oportunidade de ter responsáveis empenhados nos meus estudos a fim de que eu descobrisse meu próprio vento. E tenho certeza que existem histórias parecidas por aí, inclusive entre vocês que leem esta e outras críticas.

A busca pelo real por mais que seja uma chama

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Tecnicamente, O Menino que Descobriu o Vento é confortável. O que quer dizer que tudo parece encaixado, mas nada é um sobressalto aos olhos. A direção de fotografia, por exemplo, de Dick Pope (o mesmo que fez um trabalho excepcional em Lendas do Crime, de 2015) é nada mais do que adequada, numa tentativa certeira de evocar a realidade. Nessa busca pelo real, a inserção das figuras cultuais, especialmente aquela com rosto de boneca e os olhos circulados de vermelho, traz um quê de fantástico para outras culturas em meio a algo tão já sofrido.

E é esse sofrimento que leva e traz as figuras; que contorna as vidas de William e de sua família; que alimenta a fome de aprendizado. Sem afetar a sua história com distrações e sem glamourizar desgraças, Ejiofor faz do seu filme uma lição. Mas não uma fictícia lição de moral clichê. Tudo é uma questão de vida mesmo, de lagarta virando borboleta, de semente que desabrocha rachando o asfalto, de mente que se desenvolve com objetivos muito maiores do que seu dono.

O amor em O Menino que Descobriu o Vento é concreto. É ele que se manifesta em arte e em entretenimento do mais nobre. Sensível, vulnerável e infinito enquanto dura, que todo o sentimento exposto nesse trabalho seja também imortal, por mais que seja uma chama que dura apenas pouco menos de duas horas. E que o olhar do pequeno e sábio William ao final, direcionado para o horizonte – como um capitão em total domínio do navio de sua vida –, sirva de inspiração.

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