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Crítica | O Doutrinador faz discurso raso no momento mais oportuno

Por| 01 de Novembro de 2018 às 09h27

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Crítica | O Doutrinador faz discurso raso no momento mais oportuno
Crítica | O Doutrinador faz discurso raso no momento mais oportuno

O sangue no peito da camisa da seleção brasileira usada por uma criança ou o jornal que denuncia o caos na saúde pública, mas serve de porta-copos para o café de qualidade, moído na hora na residência do governador. São imagens fortes e com muito a dizer que aparecem logo nos primeiros minutos de O Doutrinador. São, também, o máximo de discurso a que o filme chega.

Lançamento desta semana nos cinemas brasileiros, a adaptação das HQs de Luciano Cunha, dirigida por Gustavo Bonafé, chega no momento mais oportuno possível. Saindo logo depois do segundo turno das eleições, o longa tenta aproveitar o momento político para aumentar a fixação, ao mesmo tempo em que toma cuidado com o calendário para não se tornar um discurso. Se a intenção é essa, o momento foi preciso para, ao mesmo tempo, usufruir do hype, mas sem se tornar um palanque.

Não que a exigência, aqui, seja a de tomar um partido ou fazer campanha, muito pelo contrário. Se você não está, pelo menos, com os ânimos exaltados diante da situação atual, independentemente da sua posição no espectro político, não está muito atento ao que acontece. Muito se discute fora do cinema, mas ao falar pouco dentro dele, O Doutrinador acaba falhando até mesmo em passar sua mensagem mais básica.

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O protagonista da história é Miguel (Kiko Pissolato), um agente federal que sofre uma tragédia familiar. A traumática morte de sua filha chama a atenção pela trivialidade, como um acontecimento comum de todo dia, mas, para o personagem, é a fagulha que o transforma n’O Doutrinador e que cria o embate de forças que durará toda a produção. O culpado, aqui, não é o autor do disparo, mas sim todo o sistema, evidenciado pela banalidade com a qual toda a questão é tratada, desde o momento do tiro até o atendimento em um hospital público largado às traças.

Aqui, também, entra em questão a primeira grande necessidade de suspensão de descrença, diante da atitude do único médico responsável pelo local. Seria, claro, mais um sintoma da desgraça do país retratado no filme, não fosse o fato de logo notarmos que quase tudo em O Doutrinador é tratado de maneira incrivelmente básica. Até mesmo o surgimento do herói soa como um acaso, em vez do início de um embate que dá mote a toda a produção.

Poderíamos especular diferentes motivos além-filme para justificar essa falta de profundidade, mas a verdade é que o grande responsável é mesmo o roteiro, que não faz questão de seguir por muito tempo nenhum dos caminhos dispostos. O texto também não ajuda muito, e quando aliado a atuações aquém do esperado por boa parte do elenco, faz com que o resultado seja ainda mais negativo.

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Uma exceção é Sandro Correa, o personagem interpretado por Eduardo Moscovis. A cara de cinismo do governador diante dos agentes da lei ou fazendo um pronunciamento no qual promete melhorias à nação configura o ponto alto de O Doutrinador e é capaz de gerar todo tipo de sentimento de ojeriza no espectador. Em uma explosão de violência justificada por sua empáfia, porém, ele deixa a história para dar abertura, agora, ao sangue baseado em pouco além do próprio combate à ordem vigente.

Trechos que poderiam carregar grande peso não o possuem devido a atuações preguiçosas e diálogos ainda mais cansados. A repetição de imagens e conceitos também faz com que o todo pareça um apanhado pouco inspirado. Basta contar quantas vezes um político aparece gargalhando em um momento de soberba ou diante de uma pilha de dinheiro. É uma demonstração mais do que cristalina de quem é o verdadeiro inimigo, mas desnecessária. Todo espectador na sala já sabia muito bem antes mesmo de entrar no cinema.

Imagens bonitas e realidade triste

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Todos nós já estamos mais do que acostumados com filmes baseados em HQs, com suas imagens bonitas que poderiam sair da tela diretamente para pôsteres ou, para manter o tema, as páginas dos quadrinhos. E, nesse ensejo, O Doutrinador se encaixa muito bem não apenas no estilo que tanto vemos por aí, mas também tem no conjunto visual sua maior força.

As belíssimas imagens da cidade de São Paulo servem como o plano de fundo para uma saga agressiva e, porque não, incrivelmente triste. Enquanto Miguel pratica corrida por cenários como o Minhocão ou o Viaduto Santa Efigênia, vê as luzes acima, com um neon artificialmente aplicado para compor a cara de gibi, e as mazelas mais perto de si, sob o colorido.

Há bom uso da escuridão, sem ocultar elementos importantes das cenas, enquanto os momentos em que Miguel está do lado “certo” da lei aparecem de forma plástica e clara. Mesmo as cenas em que ele está sendo perseguido, usando o manto d’O Doutrinador, carregam mais iluminação, ao contrário dos momentos em que ele age contra seus inimigos, sempre envolto em sombras e com os poderosos olhos vermelhos de sua máscara servindo como único sinal de sua presença.

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A aparência do personagem, aliás, é um ponto a parte que merece ser discutido, carregando, ao mesmo tempo, o visual necessário de um anti-herói dos quadrinhos, sem abusar da suspensão de descrença por termos um personagem que se esconde nas sombras enquanto carrega LEDs no rosto. O Doutrinador não é nada sutil e, ao contrário até mesmo do Batman, não causa medo por sua presença. É o fato de ninguém vê-lo chegar que causa temor.

A força dessa imagem, entretanto, é quebrada em momentos de maior tensão, como quando um dos agentes federais é capaz de se aproximar do personagem a ponto de encostar nele e o impedir de atirar, sem que ele note. Entram em conflito, também, aspectos relacionados ao próprio preparo de Miguel ao embarcar em sua jornada, com o roteiro esburacado, por vezes, o fazendo parecer pronto para tudo, enquanto, em outros, comete erros crassos fruto de uma verdadeira falta de bom senso.

O que mais faz falta mesmo, entretanto, é a mensagem. Há mais significado em pichações nas paredes em momentos específicos da ação do que no próprio longa, que parece bem mais focado na violência e nas cenas de ação do que em mostrar seu propósito. Isso não seria um problema não fosse o fato de essa história se passar em um ensejo no qual participamos todos os dias. Até mesmo a obra mais fantástica dos quadrinhos pode dialogar com nosso mundo, e quando a trama se passa nas ruas das nossas cidades, isso fica ainda mais evidente.

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Comparações com outros filmes nem sempre são adequadas quando falamos em cinema, mas aqui é meio difícil não lembrar de Tropa de Elite 2 — principalmente nos momentos em que o roteiro de O Doutrinador parece querer repetir os jargões do longa de sucesso, sem 10% da criatividade. Mas a similaridade não é sobre isso, mas sim sobre o comportamento básico do protagonista, que surpreendeu na ocasião.

Muita gente reclamou quando Nascimento resolveu falar em vez de atirar, citando uma distorção no caráter do protagonista. Mas e quando essa distorção vem dos atos que tornaram O Doutrinador quem ele é e acabam soando como falhas no personagem? Estaria ele, no fim das contas, lutando contra a corrupção, agindo em prol de uma vingança pessoal ou sendo simplesmente um maluco?

Em seus atos obstinados, Miguel acaba perdendo seu foco inicial e o roteiro, mais uma oportunidade de levantar questões, fazer apontamentos e, principalmente, ganhar profundidade. Se Nascimento escolheu o plenário por perceber que pegar em armas não gerava os frutos desejados, a percepção do espectador de O Doutrinador é que isso também vale para disparos e rifles de precisão, mesmo quando o filme atinge seu ápice.

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O momento crucial da jornada nos cinemas não soa como uma catarse, e sim como um absurdo bizarro, que pode chegar até mesmo ao ponto de virar a opinião de quem assiste contra o protagonista. O Doutrinador é um filme que não sobrevive ao mínimo dos questionamentos, enquanto, para quem está do lado de cá da tela, o que mais sobram são perguntas e, principalmente, temores que herói nenhum seria capaz de aplacar.