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Crítica | Green Book: O Guia – "Só pode falar de flow quem desenvolve"

Por| 01 de Fevereiro de 2019 às 09h19

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Diamond Films
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Em 1989, quando Bruce Beresford lançou Conduzindo Miss Daisy, vivia-se em um mundo que começava a dar adeus à Guerra Fria. Por mais que o conflito fosse entre os Estados Unidos e a União Soviética, o mundo sentia o peso das mais de quatro décadas de tensão. Foi em 1989 que veio abaixo o Muro de Berlim. No mesmo ano, o então presidente americano George H. W. Bush decretava “Tolerância Zero” aos traficantes e usuários de drogas ilícitas, reprimindo e encarcerando quem fosse pego consumindo qualquer tipo de droga proibida. Aumentava, dessa maneira, a fiscalização policial. Com o combate ao tráfico chegando a níveis antes nunca encarados, não deve ser difícil imaginar quais comunidades mais sofriam com reprimendas, intervenções e com violência desmedida.

Era uma época, também, onde um filme como aquele protagonizado por Jessica Tandy e Morgan Freeman ganhava voos impensados. Com o mundo clamando por paz ou trégua, produções como Nascido em 4 de Julho (de Oliver Stone) ou Faça a Coisa Certa (de Spike Lee) eram relegadas a papéis coadjuvantes na principal premiação popular da terra do Tio Sam. O filme de Stone perderia o principal prêmio do Oscar justamente para a história crescente de amizade entre o motorista negro e uma senhora judia. Já o produzido por Lee nem mesmo seria indicado na categoria – algo que marcaria aquele ano para sempre.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!

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O racismo em tons pastéis

Green Book: O Guia surge como Conduzindo Miss Daisy, despretensiosamente, cercado de filmes mais efetivos, mas capaz de cativar de uma forma muito sedutora. Sua pegada cômica – aliada a um roteiro econômico – pinta o racismo em tons pastéis. Essa abordagem menos incisiva transforma o filme em uma espécie de guia (assim como aquele que dá nome ao filme), em uma lista de tópicos a serem abordados (um tipo de check list) que jamais são de fato abordados pela obra em si.

Assim, os diálogos escritos por Nick Vallelonga (filho real do protagonista interpretado por Viggo Mortensen), Brian Hayes Currie e Peter Farrelly (o próprio diretor) são de muita felicidade ao construírem bases – mesmo que pouco sólidas – que podem causar reflexões mais densas por parte do público, mas são igualmente de muita infelicidade ao tratarem essas bases como suportes para que a história padrão possa ter seu início, seu meio e seu fim.

A estrutura natural de um road movie que anda de mãos dadas com a quase-fábula de amizade entre um grosseiro ítalo-americano (Tony Lip – Mortensen) e um pianista afro-americano (Dr. Don Shirley – Mahershala Ali) não encontra dificuldades em evocar gargalhadas – muitas delas um tanto quanto agridoces. Esse jeito de fazer rir com culpa, marca utilizada pelo diretor Peter Farrelly em filmes anteriores (como em Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros e em O Amor é Cego) torna o atualmente – e felizmente – impensado humor de temática racista em algo facilmente digerível (ao menos em primeira instância).

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Com o humor nascendo do absurdo da realidade, as previsibilidades das situações dão lugar à leveza de como o tema é tratado. Se por um lado isso pode funcionar como um desserviço à luta por igualdade racial – que nunca é tratada com leveza na vida real –, por outro traz à tona debates necessários, como, por exemplo, sobre ser negro e gay em uma sociedade tão racista quanto homofóbica. Além disso, por mais que o filme se passe na década de 1960 (década na qual Martin Luther King Jr. seria assassinado), pode ser de um desconforto fulminante o grau de carisma e identificação que Tony detém. Muito graças à atuação meticulosa de Mortensen, o personagem é a transfiguração para a tela de um ser humano racista que, na verdade, nem racionaliza exatamente o porquê. Essa questão, apesar de humanizar e ceder mais camadas de personalidade para aquele homem, parece pender demais a favor das justificativas e esquecer de dar espaço para uma dubiedade maior.

Talvez pelo fato de um dos filhos ser corroteirista, Tony tenha suas atitudes odiosas rapidamente diluídas, transformando o caminho do amadurecimento da amizade entre ele (Tony) e o Dr. Shirley em algo muito menos agressivo e muito mais agradável do que demonstra o potencial das cenas. De qualquer modo, essa abordagem “café com leite” parece de muita consciência ao enfraquecer os embates entre os dois, como se o foco não fossem as discussões raciais, mas apenas a amizade entre dois sujeitos de mundos opostos.

Acariciando feridas abertas

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É interessante, por outro lado, perceber a evolução meteórica de pensamentos de Tony: Se, inicialmente, ele se nega a reutilizar copos de vidro porque estes foram utilizados por homens negros, posteriormente ele, acaloradamente, já se diz “mais negro” do que o próprio Dr. Shirley. Enquanto essa conclusão completamente errada recebe um olhar letal da personagem de Ali – jamais se saberá o que é ser um negro sem o ser de fato (assim como ser um integrante da comunidade LGBT, ser uma mulher ou ser qualquer outra existência que passou ou passa por subjugação) –, o diretor Peter Farrelly, com empatia, mas fora do seu lugar de fala, demonstra que o seu principal objetivo é agradar.

Partindo desse ponto de vista, pode ser perceptível que o humor de Green Book: O Guia funcione muito mais para amenizar a discussão – jogar mais leite no café – do que para revelar as feridas abertas de uma sociedade ainda carcomida por crimes do passado.

Abraçando Tony como se abraça aquele tio presente em muitas famílias que “é grosso, mas que tem um coração enorme”, talvez Farrelly (Vallelonga e Currie também) tenha conseguido retirar a responsabilidade de gente através da justificativa da ignorância. É um caminho um tanto quanto covarde, porque, por mais que se possa ser empático e solidário a qualquer causa, é preciso tentar o ser a ponto de chegar perto de conseguir enxergar com outros olhos. Porque o olhar de um homem, a experiência de uma pessoa heterossexual ou a vivência de alguém com a pele branca (como Farrelly) jamais será a mesma, respectivamente, de uma mulher, de alguém da comunidade LGBT ou de uma pessoa negra.

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Só pode falar de vida quem vive. Só pode falar de sofrimento quem sofre. Só pode falar de amor quem ama. Só pode falar de flow quem desenvolve. – Criolo

Faça a Coisa Certa

Mesmo assim, por mais que 1990 tenha passado há quase 30 anos e com a discussão racial muito mais aprofundada de hoje, é possível que Green Book: O Guia tenha o mesmo ápice que Conduzindo Miss Daisy alcançou. Por outro lado, o Muro de Berlim jamais foi reerguido (e querem erguer outro parecido em uma fronteira), a “Tolerância Zero” desmedida de George H. W. Bush não parece ter encontrado uma solução além de segregar ainda mais e um filme dirigido por Spike Lee (Infiltrado na Klan) está indicado ao Oscar como um dos favoritos – além do próprio Lee como Melhor Diretor pela primeira vez.

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A história vai se repetindo, mas vai felizmente evoluindo (por mais que haja quem queira provar o contrário). Ela (a história) pode falar de vida: ninguém viveu mais; de sofrimento: ninguém conhece mais a dor; de amor: ela inventou o amor; mas, principalmente, de flow.