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Crítica | Doutor Sono não sabe ser sequência nem algo realmente novo

Por| 06 de Novembro de 2019 às 11h50

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Crítica | Doutor Sono não sabe ser sequência nem algo realmente novo
Crítica | Doutor Sono não sabe ser sequência nem algo realmente novo

O caráter de clássico está inevitavelmente atrelado à obra de Stanley Kubrick e também a O Iluminado, para muitos um dos melhores filmes de terror de todos os tempos. Há um toque de claustrofobia, desespero e loucura no filme de 40 anos atrás, com uma violência ao mesmo tempo sutil e completamente visceral que poucos conseguiram emular ao longo das últimas quatro décadas, mesmo que tentassem.

O longa de 1980, com Jack Nicholson no papel principal, é simples e grandioso, direto ao ponto, mas com muitos discursos e, acima de tudo, aterrorizante. Todas características que simplesmente não existem em Doutor Sono, sequência que chega nesta semana aos cinemas brasileiros e parece não se decidir entre ser uma continuação efetiva ou se prefere seguir seu próprio caminho. No final, não sai com louvor de nenhuma das duas alternativas.

Cuidado! Daqui em diante este texto pode conter spoilers!

E isso valeria mesmo se afastássemos completamente a comparação com o longa original. Seria injusto comparar qualquer coisa com a obra de Kubrick, e isso não é apenas palestrinha de cinéfilo: poucos filmes, mesmo hoje, são como os dele, e Doutor Sono, se não carregasse o peso de ser uma continuação de uma das maiores obras do cineasta, poderia até ter se saído melhor, com mais destaque para o que traz de novo.

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O protagonista de nossa história é Dan Torrance, interpretado por Ewan McGregor. Sim, o Danny do filme original, que décadas após os incidentes no Hotel Overlook, e mesmo depois de aprender a lidar com os fantasmas literais desse passado, ainda parece afetado diretamente por eles. Justificado, afinal de contas, transtorno é realmente o que se espera de alguém que, quando criança, quase viu a si mesmo e sua mãe assassinados a machadadas pelo pai, dominado por forças ocultas.

A produção, entretanto, abre mão da claustrofobia e faz uma viagem por cidades do interior americano, uma marca peculiar de Stephen King, para mostrar que não apenas Danny, mas o mundo é iluminado. O dom que ele acreditava ser restrito existe por aí em outras pessoas e em diferentes intensidades; da mesma forma, assim como ele é um dos mocinhos, e inclusive quer distância de tais poderes, que só o trouxeram desgraça, também existem aqueles que fazem uso dessa força de formas distintas.

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Por isso mesmo a história se separa, de forma a mostrar as variadas maneiras com as quais os Iluminados lidam com seus próprios poderes. Abra Stone (Kyliegh Curran) é uma garota que, aos poucos, começa a tomar comando de seu próprio dom e o utiliza para se comunicar, da mesma forma que também recebe mensagens que tornam suas noites não muito tranquilas. Há uma conexão entre essas pessoas, afinal de contas, e sendo uma das mais poderosas, ela acaba servindo como vetor.

O terceiro pilar dessa história se une a ela na forma de Rose (Rebecca Ferguson), líder de um grupo de párias que utiliza esse poder de outra maneira. A conexão com o oculto se dá na forma da manutenção do próprio poder, com o consumo do que pode ser explicado como a energia vital dos outros Iluminados, responsável por fazer com que não apenas ela, mas também seu bando sejam eternos e permaneçam sempre bonitos, ativos e vivos.

Fica criado, assim, um enredo que vai chacoalhar as estruturas de todos eles em maior ou menor grau. Danny, na medida em que deixa seu passado para trás e constrói a própria vida, descobre que ainda precisa retornar aos lugares mais sombrios de sua própria alma. Abra verá seu mundo confortável virando de cabeça para baixo da pior maneira possível, enquanto o mesmo vale para Rose, só que no sentido oposto. De megera poderosa, ela perceberá que existem, sim, machados mais afiados que os seus.

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Doutor Sono investe mais de metade de suas 2h30 de projeção na formação desse universo, mostrando com profundidade cada um desses três elementos antes de colocá-los em rota de colisão. O catalisador desse encontro é a morte de Bradley (Jacob Tremblay), outro Iluminado, que acaba ecoando nas vidas tanto de Danny quanto de Abra, revelando a existência deles para o bando de Rose.

Quando deveria ser um filme de horror, Doutor Sono acaba se transformando em um jogo de gato e rato potencializado por forças do oculto. Como dito, estamos diante de um universo construído com cautela, de forma a ser fixado na mente dos espectadores e, logicamente, fazer sentido, apesar de alguns deslizes como a quebra bizarra na personagem Andi (Emily Alyn Lind), que de figura interessante introduzida nos momentos iniciais, acaba completamente pervertida sem razão, perdendo completamente o propósito.

O maior problema, porém, são os momentos em que Doutor Sono se lembra que precisa ser, acima de tudo, uma sequência de O Iluminado.

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Um passo à frente, mas olhando para trás

Os primeiros minutos, com uma voltinha rápida pelos célebres e sinistros corredores do Overlook, bem como um olhar breve sobre o estado da família Torrance após aqueles eventos, servem como uma boa continuidade. São anedotas interessantes sobre o que veio depois e um reencontro com velhos conhecidos, mesmo que interpretados por novos atores.

Entretanto, como a mais de uma hora seguinte demonstra, Doutor Sono é sua própria história. Quanto a isso, está tudo bem, e é interessante ver que a história pega suas bases para seguir os próprios passos. Só que não, já que o roteiro faz questão, o tempo todo, de lembrar ao espectador de que aquela é uma sequência de O Iluminado, como se considerasse um erro sua própria independência.

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Tais conexões acabam forçadas e até deslocadas, principalmente a maior delas, o inevitável retorno ao Overlook para o combate final. Sim, essa expressão pode ser utilizada aqui, pois, em muitos momentos, Doutor Sono chega a lembrar um filme de heróis sobrenaturais, com indivíduos de diferentes poderes e alinhamentos trabalhando juntos ou uns contra os outros até que, no final, somente reste o mais forte ou inteligente de todos.

Essa necessidade constante de lembrar o passado se torna ainda mais bizarra quando notamos que o roteiro de Flanagan deixa de lado o que seria, no final das contas, sua maior conexão aos eventos de O Iluminado. Ao longo da projeção, quem leu o livro pode até entender o caminho que o argumento está tomando, mas, ao perceber o final profundamente alterado, sairá do cinema com a sensação de que nada faz sentido.

O pior de tudo, porém, é que ao tentar demais ser uma sequência de O Iluminado e menos seu próprio filme, Doutor Sono acaba esvaziando suas melhores qualidades, entregando apenas sorrisos de canto de boca para os fãs do original. As lembranças do Overlook e as conexões com o passado, quando não são periféricas, soam exageradas e, dá para dizer, até mesmo desnecessárias.

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Doutor Sono até tenta enaltecer o que traz de novo e expandir o universo do filme original, mesmo que de forma a torcer os narizes dos mais puristas defensores do horror. O longa não abraça as próprias ideias nem assume as consequências dos atos que exibe. Reconhecido por bons exemplares modernos do terror “dentro de casa”, como Jogo Perigoso e Hush: A Morte Ouve, Flanagan parece não saber muito bem o que fazer ao sair para a rua.

Doutor Sono estreia nos cinemas brasileiros em 7 de novembro. Caso vá assistir, vale a pena ficar ligado na aparição surpresa de Danny Lloyd, o garotinho do filme original, que aparece com bastante destaque na cena do jogo de baseball.