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Crítica | A Favorita: Nem só de estranhezas e humor sofrido

Por| 05 de Fevereiro de 2019 às 10h41

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Fox Film do Brasil
Fox Film do Brasil

Yorgos Lanthimos tem uma filmografia no mínimo original. Sempre abraçando histórias gloriosamente pessimistas e com um clima fúnebre – por mais que seus personagens lutem para viver –, o diretor constrói paralelos com o que há de mais egoísta nos seres humanos. Mas ele nunca o faz gratuitamente. Cada face de repugnância, de estranheza e de incômodo só revela mais e mais de um lado da natureza humana pouco explorado em uma arte que ainda é vista por muitos como apenas entretenimento.

Despontando para o mundo com Dente Canino (2009), seu terceiro trabalho à frente de um longa-metragem – que concorreu ao Oscar de 2011 como Melhor Filme Estrangeiro pela Grécia –, Lanthimos tem construído uma carreira a ser estudada: Enquanto seus roteiros sempre circundam os personagens como se eles fossem peças de um tabuleiro de xadrez maligno, sua direção tem uma das mais perceptíveis e crescentes mudanças de forma. É como se, declaradamente, o diretor fizesse questão de mostrar sua metamorfose ambulante – especialmente ao colocar os pés em Hollywood com O Lagosta (2015).

Se, até o citado Dente Canino, o diretor filmava sempre como uma janela para os acontecimentos passados, por meio de cenas imóveis e planos raramente fechados em closes, Alpes (seu filme seguinte) já revelava um trabalho com alguma movimentação a mais e um maior número de primeiríssimos planos. Mas foi com O Lagosta que Lanthimos começou, de fato, a movimentar sua câmera. No ano seguinte, O Sacrifício do Cervo Sagrado viria concretizar essa adequação ao cinema hollywoodiano: a forma modificava-se com muita competência, sem apagar a assinatura autoral, e o conteúdo permanecia lanthimosiano.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers.

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A implosão produzida pelo sistema

Eis que A Favorita estreia como o primeiro filme baseado (ou inspirado) em acontecimentos reais da carreira do grego e, por isso, com uma provável limitação na construção de personagens. Esse é um fato que se encaixa inteiramente na tal metamorfose vivida por Lanthimos: ele parece aproveitar cada plano para revelar toda a excentricidade descabida de uma realeza mórbida, que se deteriora de dentro para fora.

Em oposição aos seus filmes anteriores, que trazem fatores externos contaminando e destruindo valores pessoais – como Martin (Barry Keoghan) em O Sacrifício do Cervo Sagrado ­–, a realeza de A Favorita mostra-se contaminada desde o princípio, quando inicia um processo de implosão.

Não que seja inexistente a fagulha externa. Assim, Abigail (Emma Stone) surge como uma faísca que alimenta a pólvora prestes a explodir, mas ela é uma centelha produzida pelo próprio sistema – e não somente devido ao grau de parentesco dela com Lady Sarah (Rachel Weisz). Esse sentido de emergência, de realidade problemática, é ressaltado pelo diretor desde o princípio, quando não se priva de, junto ao diretor de fotografia (Robbie Ryan, de Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe), combinar técnicas para revelar visualmente a distorção daquele universo.

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Desse modo, são muitos os planos filmados a partir de uma lente grande-angular que distorce as bordas e provoca uma sensação de desconforto. Além disso, esse tipo de escolha tem o poder de causar uma perturbação sobre distorção da realidade – fato que inteligentemente parece buscar absolvição de qualquer modificação histórica: afinal de contas, trata-se da visão de um diretor autoral que parece enxergar através das lentes das câmeras como se elas fossem o olho-mágico de sua porta de entrada.

A ambiguidade: do visual ao humor

Ainda, nesse mundo que pouco a pouco se dissolve, o desenho de produção de Fiona Crombie (de Maria Madalena) e o figurino de Sandy Powell (que concorre ao Oscar 2019 duplamente – pelo filme em questão e por O Retorno de Mary Poppins) constroem um efeito praticamente ambíguo: apesar da aparência clássica de filmes que retratam monarquias, há quase sempre a impressão de que algo visualmente moderno, que vai além da fala, acompanha a vida da Rainha Anne (Olivia Colman). Esse fato cria uma espécie de ambiente nonsense, que vai da decoração de set de Alice Felton (de Venom, 2018) às atuações – destaque, nessa perspectiva, para o Harley de Nicholas Hoult.

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Essa ambiguidade mais do que sadia funciona como um relógio suíço nas mãos de Lanthimos. Ele, que sempre lidou com o desconforto como algo muito próximo, traduz o roteiro da estreante Deborah Davis e de Tony McNamara (de Ashby, 2015) com um senso de humor muito peculiar, um cinismo que é parte da carga emocional dos seus filmes.

Por outro lado, trata-se de um humor com um grau de tensão que faz qualquer início de risada se transformar em rugas de expressão – como quando Lady Sarah é sujada por respingos de sangue de pombo: Vem o princípio de um riso, mas logo chega a preocupação, a dúvida do que se dará a seguir.

A degradação da Rainha Anne é a degradação de um povo

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E nem só de estranhezas e humor sofrido vive A Favorita. Cheio de um interesse profundo pelo desenvolvimento da Rainha Anne, o roteiro compõe uma das metáforas mais tristes e, ao mesmo tempo, mais profundas do cinema contemporâneo sobre a maternidade. Ao passo que a desanimada rainha relata sua incapacidade de ter filhos – 17 entre abortos espontâneos e mortos –, sua criação de coelhos é o seu maior apego à vida. Todos nomeados como os filhos que ela não pôde ter... E exatamente animais que são um símbolo de fertilidade.

Não somente: A cena final é tão poderosa e tão bem construída por Lanthimos e o editor Matt Friedman (também de Ashby) que, ao surgir a tela negra que precede os créditos, o alvoroço da sobreposição tripla pode permanecer na mente: os coelhos (que parecem se multiplicar quase que infinitamente), a Rainha Anne e Abigail – esta que roubou da solidão ativa sem ter a disposição de oferecer verdadeira companhia.

Por mais elogios que A Favorita mereça – e talvez seja o filme mais completo do seu diretor –, é impossível não ressaltar as atuações do trio principal. Enquanto Weisz e Stone conseguem alcançar uma dinâmica de timing impecável, sempre em um jogo através do qual é quase impossível saber quem está à frente, Colman sustenta o peso monumental de ser a personagem mais complexa de um filme tão intricado. Ela (Colman) não somente carrega esse fardo, mas o faz com uma competência assustadora. De acessos de criança mimada a preocupações decorrentes do seu posto, cada gesto, cada expressão e cada entonação vocal transparece o profundo estudo de personagem. Lanthimos, sabedor da capacidade da atriz que tinha em mãos, evocou toda a degradação daquela mulher com um respeito enorme, sem exagerar nos closes que enfatizam um derrame cerebral – no terceiro ato – e finalizando tudo com as dores física e psicológica daquela mulher. Não para que se sinta pena, nojo ou desprezo, mas para que se entenda a força de quem está corroída por uma elite hipócrita, traiçoeira e venenosa.

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Com a concepção de que todos possuem, em algum nível, traços de podridão, o diretor expõe o reino de A Favorita de uma forma surreal (ou perto disso). É a partir desse ponto de vista que ele (Lanthimos) convoca seus pensamentos políticos de que dinheiro e sexo – e, aqui, a guerra – são os alicerces do poder e mancha igualmente a plebe (como a plebe suja de sangue o rosto de Lady Sarah). Mas ele o faz da forma mais consciente e humana possível, revelando que o povo é influenciado pelo poder de quem o governa e, se esse governo é sujo, dificilmente o resultado será uma sociedade limpa.

E o ar criado em A Favorita, como se a degradação de um povo através de uma política confusa e desastrada fosse uma novidade, é assustador.